Codornas Assadas

Inops, potentem dum vult imitari, perit

O mercado cria datas comemorativas ou as toma para si e faz com que elas se perpetuem. Consumidores ou não, nós as acolhemos, pois em nosso cotidiano tão exigente não há tempo para ladainhas afetivas. Convencionamos, então, confraternizar-nos em uns parcos dias festivos. E foi assim que eu vim parar neste restaurante burguês ao lado de minha família (cabe dizer que a meu pai, o homenageado do bimestre, tal ritual também não agrada, tornando esta ocasião ainda mais torpe).
Começa-se por esperar num ambiente conjugado invadido por um sol impiedoso disputando qualquer canto com outras vítimas afortunadas (ingênuas ou sádicas), que se amontoam como etíopes subnutridos em frente ao acesso principal, de onde se vê famílias se esbaldando freneticamente em cada um dos pratos mais exóticos, para depois jogar suas panças para debaixo da mesa enquanto se segura uma xícara irrisória, ignorando os clamores silenciosos do garçom, que deseja faturar com aqueles que aguardam famintos do lado externo.
Senhoras que exibem quilates às dezenas não deixam de cerimônia e, entre gargalhadas aflitas, tratam de chafurdar em seus pratos – cientes do desespero que as cercam, esforçam-se por exibir seu regozijo de forma dramática. Cadeiras se chocam contra mesas e traseiros desavisados fazendo trepidar um naco de javali; serventes se esquivam com perícia e angústia de homens gordos que exibem um penduricalho eletrônico para cada reentrância de seus trajes sempre iguais.
Já postos em nossos lugares, vemos que não há porto-seguro entre tanta tormenta: como se fossemos nós as vítimas do forno predatório, esprememo-nos entre os burgueses que se confundem inscritos num aro de conveniências ardoroso. E somos arrastados por travessas que amparam cadáveres de animais que eu não sabia ser passíveis de se tragar; mergulhamos em caldos e nos untamos com óleos viscosos, mastigamos violentamente, num silêncio exasperado por toda comoção que nos cerca.
Pagos os tributos por nosso próprio sucesso – inclusos os coquetéis consumidos num ato inocente ou desesperado no pátio e cafés ínfimos de valor exorbitante – somos finalmente atirados à sarjeta adornada por belos carros asiáticos. O estômago, antes confuso, agora se dá conta de seus compromissos. A brisa suave saúda as axilas besuntadas e conclama às pazes que desçam às voltas da família burguesa que deixa o recinto satisfeita, pois não se vale da ocasião, e sim do ensejo: uma rara reunião familiar a ser guardada e consumida por anos.

Manifesto Elucidista

Ouço falar, deliciado, da desordem do século que passou... ¿Mas, e o desarranjo contemporâneo, será que não o percebem?

O capitalismo eleva os produtos internos brutos; os centros comerciais têm belos vernizes; as conjecturas, os gráficos são sempre otimistas... Os espíritos, porém, são de uma decadência desoladora.

Confundimos conforto e conformismo; paz e passividade... Pazes malignas, como parasitas que nos sangram, consomem-nos sem que percebamos.

Pois, então, demo-nos ao totalitarismo, ao líder bélico dotado das mais puras intenções... Dissimulemos nossos fins anarquistas nos entregando a homens de toda estirpe de ideologia: deixemos que eles destruam enquanto tentem erguer.

Contestemos este progresso doloroso que nos faz revisitar os desalinhos do passado, mas, agora, tomando-os por prosperidade... Tenhamos consciência de que representamos o futuro do porvir que não sucederá; a inovação que perpetuará o atraso; a evolução que fará retornar ao caos.

¡Fartemo-nos da ração estatal!... Usemos do orgulho de se ser gado; não nos esqueçamos da pátria, a Nação do futuro que não virá: publiquemos as belas estampas de nossa prosperidade; consolemos este povo até que seu país, enfim, rua.

¡Façamos com que se perceba o caos!... Não pela humanidade, mas, sim, em nome da arte; e, para tanto, confundamos mesmo os mais perplexos: façamos haver guerras por biscoitos ou religião.

Sejamos ásperos e inclementes: ajamos como os mais apáticos entre os acomodados, esperando desde já pela nova ordem... Pela perpetuação do pouco de valor que conquistamos ao longo desses duzentos mil anos, tratemos de conspirar por nossa extinção.

Consumamos Deus e drogas até que se esvaiam; até que não nos sobre um grama de fé... Então, lúcidos como bestas, reconstruamos apenas pilares que sustentaram construções sem pecados.

Quando ruírem os paços e obeliscos, terminemos de implodir toda estrutura e convençamos as almas a se explodir... Em nome da conservação do incômodo, questionemos toda paz que vier a se suceder.

Paraíso Ideal

Ut quemque Deus vult esse, ita est

Ciência e toda religião coincidem numa única especulação: multiplicai-vos. E isso porque tudo de efêmero almeja ser eterno, e aos homens não há subjetivismo ao deixar um suplente à comunidade desfalcada - ainda mais ao tratar de deixá-la mais eficiente à sua prole, e adaptar tal progênie para que persista em seu rumo. A meus olhos, então, o conceito de um Paraíso além-vida à espera dos cidadãos disciplinados de uma dita sociedade acaba por antagonizar com a própria existência humana.
Por imaginar que a esperança do conforto post-mortem fora criada como compensação à vida de limitações em nome da comunidade meus argumentos soavam como mera provocação. Mas, se nos imolamos em busca de um sentido para tudo, contentamo-nos com um apenas. E, hoje, vejo que ao viver para a sociedade, sua manutenção e seu porvir, não preciso de outro prêmio que não partir conformado com minha atuação social. Logo, só me resta crer que o Paraíso não foi talhado como recompensa pela austeridade em vida, e sim pela anuência à instituição religiosa.
Todo Éden não passa de uma artimanha engenhosa que confronta aquele que vê esvair sua fé em tal igreja. Dito isso, proclamo minha redenção. Pois, se não tenho minha bestialidade limitada por dogmas, ainda sim conheço a moral da sociedade que habito, e por conhecê-la ainda melhor posso dizer que transbordo seus limites, agindo com mais rigor do que se faz necessário. Se não ajo bem por meu próprio conforto eterno, vejo num rumo sensato e ético um passo a menos entre a distância do mundo de meus descendentes e o tal Paraíso.

Glória, Glória!

Absque vado fluvius, nec stat sine pelice proles

Era uma vez um Estado não muito distante onde, em certa manhã, uma branda figura surgiu iluminada entre magníficas auréolas douradas, contornando os ventos e movendo as nuvens ao seu redor. Ela se proclamou a própria Ética. Os cidadãos, antes deslumbrados, ao tomar ciência de tal presença sagrada, julgaram-se abençoados. A população de tal Estado, então, pôs-se de joelhos, reverenciando aquela bela entidade, e não tardou para que todos os homens públicos do lugar se pusessem diante dela, igualmente embasbacados, tratando o seu como o mais afortunado entre os Estados.
Entre os murmúrios e as orações que se ouviam insurgiu uma voz que questionava tamanha benção: que, se fosse realmente milagrosa tal divindade, indicasse quais entre os homens públicos do Estado não mereceriam beijar os seus pés e louvar sua figura majestosa. A Ética, formosa em seus gestos, afável em suas feições, apontou suavemente seu indicador ao primeiro entre os homens de terno que se punham ante seus pés. Os cidadãos, pasmos, voltaram-se ao homem, que ajeitou sua gravata e, enquanto corria-lhe uma lágrima, pôs-se ao fim daquela fila. Antes que pudesse se refazer de tal choque, porém, a população do Estado viu que outro homem público já era denunciado pela Ética. Enquanto seguiam os burburinhos, outro e outro e, logo, todos os homens públicos do Estado foram, um por um, apontados pelo cadente indicador da gloriosa Ética.
Os políticos e burocratas, quando se amontoaram ante a população e sua censura, puseram-se, então, a difamar a suposta divindade, insurgindo contra sua validade. Como poderia um Estado de homens lúcidos, do século da ciência, creditar tanta confiança a uma figura mística e um suposto milagre? Como não exigir da tal entidade comprovação de suas denúncias? E, afinal, como poderíamos acreditar em nossos próprios olhos quando eles abusam de nossa própria razão?
Os cidadãos, então, sacudidos pelo discurso racional de seus representantes, abraçaram-se às pedras, telhas, puas e tijolos do redor e, antes que a entidade charlatã que se proclamava Ética pudesse reagir, atiraram aquilo que estivesse ao alcance das mãos na figura, que, assombrada, deu as costas àquele povo e nunca mais surgiu naquele Estado.