Contando Carneirinhos

Pater nimia indulgentia filios depravat;
matres omnes filiis in peccato adiutrices


À noite, quando busco contentamento que me permita adormecer, imagino como seria o dia seguinte caso meus pais morressem. Costumo vislumbrar acidentes automotivos, já que eu não suportaria acompanhar meus benfeitores, cada vez mais decadentes, da alcova ao leito hospitalar e, enfim, à agência funerária, nem mesmo que ambos fossem acometidos pela peste mais brutal. Contra aborrecimentos, dou-lhes uma morte súbita – e indolor, pois ainda me resta humanidade.
Dessa forma, eu me isentaria de qualquer vínculo com o exterior destas paredes (que julgo como as mais acolhedoras, pois me garantem aquela segurança que nunca encontrei em seio algum). Eu seria, então, livre para existir apenas para mim, vivendo um sonho belíssimo que confundiria solidão, despropósito e uma mediocridade dignificante, como conviria.
Eu gozaria ao me livrar de todos os seus bens, um por um, a custos módicos, assumindo uns poucos eletrodomésticos que me dão conforto e uns agrados dispensáveis; viveria só, num cômodo esquecido em meio ao subúrbio, sem freqüentar faculdades que não as minhas próprias; longe de banhos ou vaidades quaisquer, eu consumiria apenas a mim mesmo (e sopas instantâneas).
Não que eu tenha meus progenitores como entes maléficos: são, sim, pessoas torpes, como todas as outras, mas inofensivas. Odeio-os de forma singular somente por serem meus pais. Repudio-os por sustentarem referências que insisto em rejeitar; incomodo-me por exigirem um respeito que me nego a ceder. O que mais me inquieta, porém, é tê-los como o pretexto que me condena a perpetuar seus erros.
Livrando-me de sua influência ordinária, ao menos nessas fábulas, eu posso me entregar à existência maravilhosa e
vulgar que exijo para ser feliz. Satisfeito, enfim, por ter como limites apenas os meus próprios vícios, eu cerro os olhos e durmo como quem não tem consciência.

Amores Artrópodos

Amor opus laudat

Quando madura, a abelha-rainha deixa de botar ovos e sai da alcova pela única vez em sua vida. Os zangões, cavaleiros sem guerra da colméia, lançam-se atrás de sua alteza, que voa sedenta por paixões efêmeras. Em pleno vôo, os machões mais astutos fecundam-na. Gozando ou não, estarão condenados à morte: muitos perdem as vísceras junto à virgindade, os outros serão linchados pelas operárias ao retornar à colméia.
Há aranhas cujos machos são vinte vezes menores que as pretendentes. Muitas vezes, as fêmeas distraídas os confundem com o desjejum, mas os bravos enamorados continuam insistindo: invadem pé ante pé as teias da amada e copulam discretamente, sob pena de ter as vísceras vertidas em mingau caso peçam por alguma atenção.
Escorpiões e louva-deus são envenenados e decapitados por suas esposas depois do sexo. Poucos deles, raramente espertos, escapam do sacrifício. Se fossem homens, suas parceiras sanguinárias se frustrariam ao se virar armadas e se deparar com o amante vestindo as calças enquanto explica sua urgência em partir, pois no dia seguinte há um compromisso importante logo cedo.


Cadáveres Celestes

Finis coronat opus

Sob uma lua cheia indecorosa, eu, ora como poeta ora como lobisomem, cavalguei sobre o lombo de minhas frustrações, caindo bêbado numa sarjeta indigente, acomodando-me sobre o suor; os olhos embriagados, então, partiram em busca de referência e se depararam com as estrelas, muitas delas mortas há anos-luz, cadáveres celestes que se perpetuam, guiando homens pervertidos a mundos ingênuos.
Pobres estrelas, que não têm qualquer privacidade, bibelôs desalmados colecionados pelo homem, supostas fontes de inspiração a criaturas torpes, guias involuntárias do predador civilizado. ¿Se pudessem escolher entre se aniquilar logo ou se deixar abusar, será que cederiam pela vaidade?
Supus ser possível, também ao homem, fazer-se admirável depois da morte, ¿mas de que valeria restar como imagem ou memória, se tanto não atribui orgulho ou gozo? Mais vale morrer abraçado a tudo de si, levando ao túmulo contentamentos e reprovações. Era dia de coleta de lixo, minhas pretensões estavam envoltas num manto de fedor.

Julgamento Perpétuo

Bonis nocet qui malis parcit

Disseram-me que nossos entes são capazes de espelhar frações nossas. Se assim for, ao menos terei justificativa à parte de minhas confusões. Eu não me vejo refletido em qualquer pessoa com quem eu conviva ou já tenha convivido. Resta descobrir se por eu ser grotesco demais ou, simplesmente, por não reconhecer nenhuma de minhas faces. Sou, pois, um paradoxo que se confronta com outro e sai reformado do cotejo.
Foi buscando um rascunho de qualquer uma de minhas personalidades que eu encontrei um terapeuta. Hoje, trato-o por anjo: uma entidade que, vez ou outra, aparece iluminada por uma aura indecifrável extraviando minha rotina, declamando mantras estúpidos, impondo tarefas inúteis e tomando oferendas. É uma figura histriônica que joga as pernas sobre os braços da cadeira de seu consultório inóspito enquanto calcula as despesas a saldar ao final da sessão. Trato sua serenidade como impotência, assim como sua negação em admitir que eu tenha problemas psiquiátricos graves, sendo carente de drogas de tarja preta.
Meus pais mereceriam muito mais do que um mero parágrafo de um texto sem eixo que busca expurgar uns parcos ácidos nocivos de minha artéria lingual, mas terão que se contentar com tanto. Odeio meus progenitores, pois neles vejo reflexos: não vislumbro meu íntimo ou meus humores, mas, sim, meus pecados. Meus pais não me ensinaram nada além de assumir minha mediocridade em relação aos homens, ao ser supremo e ao destino que ele traça. Para me lembrar de tal condição, eles trazem em suas caras um arquivo capaz de portar resenhas de todos os erros que eu já cometi. Quando adentram em meu campo de visão, surgem como juízes que, debaixo de sua toga suada e fétida, calculam um castigo que nunca virá, já que não há sentenças – e nada poderia ser pior que isso – em julgamentos perpétuos.

Novelos Férreos

Amici, ad qui venisti?

Sua voz me assalta e me causa vertigens. Caio e me confundo com as tramas oblíquas de meus vínculos sociais, que logo serão rompidas pelas convulsões frenéticas de meu ego. Gracejos se distorcem entre os gases exalados pelo pavor; receio ter partes de mim tomadas pelo interlocutor e restituídas deformadas e irreconhecíveis. Da ignorância ou da prepotência, intrínsecas aos viventes, ressalto meu conhecimento de seus mecanismos e minha negação em contorná-los. Sou, pois, pior do que qualquer outro homem ignorante de si próprio, já que me creio conhecedor da nobre ciência da ignorância.
Por razão que não pretendo elucidar, decidi tratar de meus laços afetivos. Serão ao menos dois textos, tão cansativos e egoístas quanto todos os outros. Começo por dizer que o próprio afeto soa retórico para mim, não passando de mero acaso que lesa minha rotina. Condiciono meu contato com outros entes aos momentos de torpor, já que quando os defronto, nunca os consigo distinguir. Por isso, minhas parcas amizades são amparadas pela embriaguez, inaugurando aquilo que trato por afinidade alcoólica.
Se extraio prazer da Literatura, os habitantes de meu cotidiano são analfabetos; se me curvo à introspecção, meus convivas ocasionais se dão à euforia menos cordial. Combinamos por nosso desprazer pela vida, mas enquanto eu me afogo em nobre melancolia, meus companheiros se dão aos alucinógenos simplesmente por reconhecer sua inaptidão ao que quer que seja. Porém, como nos encontramos para bradar evoés, suas divagações imbecis simulam sintaxes a minha borracheira.
Quanto às garotas, apelo para que não exijam que eu exiba minhas reses, pois tive um único romance em minha vida. Poderia ter acumulados outras aventuras, mas aí não teria os dramas do amor singular a meu dispor. Se nossa paixão houvesse terminado em adagas ou pistolas, eu me permitiria seguir em busca de novas comoções, mas nosso rompimento foi tristemente amistoso. Não sofro por possuir apenas bocetas, sendo injuriado pela desconfiança das pequenas. Por ter tantos vértices, já não me identifico com as garotas simplórias que me rodeiam, e torço por encontrar uma dona balzaquiana que me dê liberdades e me demonstre métodos. Por hoje, confundo as normas da afeição enquanto me esqueço da funcionalidade dos orifícios.