Altares Impuros

Perditus est, mala qui sequitur vestigia pravi

Há anos, quando me descobri mau, desejei ser ingênuo, mas tal qualidade presta apenas aos adultos mais dissimulados. Não acredito em inocência, apenas em ignorância, portanto, restar-me-ia desejar ser ignorante quanto a minhas intenções e meus sentimentos, porém, nestes dias tristemente lúcidos, às vezes penso que por sadismo ou arrogância, faço questão de escancarar as entranhas mais grotescas de minha personalidade.
Por vezes, acho-me como um rato branco, uma pobre criatura perdida entre os muros de um labirinto de dimensões incabíveis, amparando miscelâneas de drogas em sua carcaça frágil, sempre ignorante de sua importância bestial em pró de uma ciência qualquer (ao que os molestadores da cobaia são os meus próprios humores).
Houve um tempo em que eu buscava burlar meus reais sentimentos, hoje, porém, posso me dizer uma fortaleza de meus vícios, demências e deformidades; um santuário imaculado de meus defeitos, tendo seu altar e seus ídolos cuidados por minha própria honradez, pois só assim posso afirmar que me sinto homem.

Signos Encarnados

Sera sunt baba pos vigesimum, scientia post
trigesimum, divitiae pos quadragesimum

Sou estúpido e impulsivo, mas minhas irreflexões me permitem algumas certezas. Posso garantir, por exemplo, que eu não me tatuarei jamais. Simbolismos não me agradam, pois personificam juízos míopes, encabrestam os sentimentos da platéia e impõe impressões próprias à aclamação comum. Mas para que este parágrafo não seja de todo indecifrável (e sendo legível, que não exponha certa hipocrisia), devo confessar que também me dou aos modismos e, mesmo que preferisse me sobressair declarando meu repúdio às tatuagens por não passarem de alegorias sociais inúteis, assumo que me perturbo tão somente pelo signo eternamente encarnado.
Cicatrizes ou joanetes não poderiam me incomodar, mas tatuagens são deformações tramadas, marcos pueris que crêem que um ciclo mereça ser lembrado. Nós carregamos nossas vidas em nossos corpos, mas não acho certo forçá-los a sustentar um símbolo do humor de outrora, cravando-lhes o passado na pele. Eu admito que me arrependo de tudo aquilo que fiz quando mais jovem, e no futuro me arrependerei de muito do que faço hoje, mas, além de minha notória insegurança há a certeza de que eu amadurecerei, e as verdades do passado, que eu tratava como objetivos, serão meros paralelepípedos no meio do caminho.
Eu admiro certas cicatrizes de meu corpo, mas elas não passam de lembranças de um velho cotidiano, não têm presunção alguma, ao contrário de tatuagens, que se tratam de afirmações precoces. E mesmo que trate meus erros e meus arrependimentos com carinho, não vejo porque dividi-los com quaisquer transeuntes. E, mais do que isso, confundindo insegurança com amadurecimento, não creio ser capaz de escolher um signo que represente meu humor atual, ainda mais aqueles que virei a amparar enquanto minha pele se tornar flácida.

Larry Flint

Quid pectunt qui non habent capillos?

Por ser solitária e despretensiosa, a pornografia parece ter sido feita sobre medida para minha adolescência. Não me lembro do primeiro contato, mas acredito que tenha sido arrebatador. Logo, eu me jogaria sobre revistas como se cresse ser possível dar prazer às mulheres de celulose. Em momentos desvairados, dedicaria toda uma semana a tarefas despropositadas, como ejacular em cada canto da casa, carregando minhas coleções obscenas por todo lado.
Por pudor, quando concebia fantasias pervertidas demais, tinha coragem apenas de me imaginar me masturbando ao ideá-las. Eu costumava roteirizar filmes pornográficos estrelados pelas meninas de minha classe, e aquelas pelas quais eu cultivava paixões ganhavam papéis de destaque. Numa confusão entre o cotidiano e o delírio, suas atuações fabulosas contrastavam com o respeito que eu lhes prestava como colegial enamorado.
Era adepto de uma certa sexualidade platônica, e ficava especialmente excitado quando os moleques da classe realizavam concursos em que confrontavam os dotes das garotas. Eu ganhava papel de destaque e redigia regras lúcidas e convenientes ao certame. Era uma oportunidade única – quando um voyeur poderia tocar o objeto de seu fetiche por alguns momentos sem ser detestado por tanto.
Perereca Que Pula Mais, Mina Que Nunca Pegarei, Miss Colegial 2000. Tamanho era meu reconhecimento, análogo ao sucesso dos concursos, propagado por todos os três corredores, que as raparigas menos favorecidas, por ver uma oportunidade de se tornarem populares ao serem expostas junto às aclamadas, tratavam, tanto essas quanto aquelas, de se jogar sobre mim na tentativa torpe de serem favorecidas. Hoje, gabo-me por nunca ter me aproveitado de minha posição, agindo com louvável profissionalismo.

Diáspora Moral

11 E se contava uma piada sobre três robôs com mal-funcionamento que, por um pretexto qualquer, haviam sido pintados de preto.
12 E na segunda-feira seguinte, dois robôs não foram trabalhar, ao que outro apareceu bêbado.
13 Ficou, pois, grato por ser um mero transeunte e não precisar sorrir. Pegou seus amendoins e seguiu seu rumo.
14 E se defrontou com as ancas helênicas de uma mulher rija, que contemplou por calçadas e não pode evitar uma ereção.
15 E como calculou mal sua marcha acabou por se posicionar contíguo. Já que tal dona andava a passos acanhados, viu-se, portanto, obrigado às passadas mais largas.
16 Acelerou, pois, os fêmures, sob pena de caminhar próximo demais ao flanco da mulher distraída.
17 E avistou vindos do sentido oposto dois meninos esguios e bem trajados que se aproximavam num andar de confiança burguesa. Preparou-se, então, ao embate de julgamentos.
18 E sustentou, desde aí, seu peito teso e avigorou os passos o quanto pode, porém, já próximo deles, recolheu-se ao centro de si, curvou as costas e encarou seus calçados.
19 Percebeu, pois, que os garotos se engrandeceram ao passar por seus ombros.
20 E foi abordado por um indigente ríspido que lhe pediu algum dinheiro para remediar um câncer desesperado qualquer.
21 E negou, afinal, não lhe restava níquel que fosse, senão uma nota maior que as pretensões de ambos.
22 Sentiu-se, pois, horrendo e se desculpou. Diante do desapontamento áspero, justificou-se outra vez pelo pecado cometido, mas nada podia fazer além de se desculpar uma última vez.
23 E os urros ensandecidos que vinham do grande galpão verde conduziram-no através da rua. Estacou, então, diante de um templo evangélico.
24 E um mulato de ombros largos que envergava um terno negro abordou-o com simpatia, convidando-o ao culto. Mas ao perceber que se tratava de um curioso mau-vestido, intumesceu sua voz.
25 Ouviu, pois, em tom de ameaça, que seria bem recebido, como que exigissem que deixasse o pátio. Saiu e se encontrou conformado por sua loucura solitária.