Abismo Adiante

Abyssus abyssum invocat

Sou tão mais fundo que quando me deparei com o que há sob minhas convenções eu não avistei nada senão o breu de um abismo enigmático. Por saber que eu me confrontaria com humores ainda mais vergonhosos do que os que habitam a superfície, não pude explorá-lo, logo, restou-me como conforto me apegar à mais oportunista fé na incerteza.
Hoje, sofro por ter me deparado com o precipício, arrependo-me por ter caminhado para longe da campina da mediocridade, lastimo cada passo dado rumo à perdição inevitável. Quisera eu não ter buscado a lucidez, não ter me confrontado, no último terço da jornada, com a presença tátil da incerteza, posta sentada sobre um trono de vermes, com as vestes decompostas e as vísceras ainda banqueteando os carniceiros.

Padeço da conquista do desconhecido que, afinal, parece ter sido forjado por mim. Agora, não posso retornar para onde não pertenço mais, nem conseguiria ousar um passo adiante, entregando-me à queda, portanto, cá estou sofrendo da aflição da descoberta que se confunde com as sombras, para sempre diante do abismo de minha essência.

Vastidão Estéril

Bella geri placuit nullos habitura triumphos?

Parte do que há aqui não passa de entulho. Muito de mim são meros escombros, ruínas num cenário desolador, destroços de um passado malvisto, bombardeados esporadicamente pelo arrependimento, aquele tirano. Se tento erguer alicerces, o sítio desgraçado se vê novamente sob ataque.
Mesmo depredada, a vila ampara uns parcos sentimentos que sobrevivem fazendo de seu cotidiano par do caos que habitam: ferem-se por aconchego, abusam-se por arrebatamento, devoram-se por fartura. Sua existência está fadada a passar por penitência.
Esgueiram-se por entre memórias explosivas, convenientemente enterradas sob o vilarejo degradado, sedentas por mutilar os sobreviventes subversivos. Parem seus descendentes entre rejeitos inativos, educam-lhes até que se tornem adversários e se vejam obrigados ao canibalismo.
Há uma vastidão estéril em mim. Terras ignoradas ou temidas pelo regime que me declara homem, um solo contaminado pelo sofrimento mais mesquinho, habitado por criaturas indecorosas. Se tento erguer alicerces, vejo que já não há mágoa que caiba em tal paisagem maldita.

Confidência Amorosa

Veritas et rosae habent spinas

Tu nunca ouviste, Amanda, que não se deve perguntar por que se ama? Pois então imagines que a resposta não te traga o conforto que esperas e sim um terrível incômodo... Não, se quisermos ser honestos, não podemos dizer porque amamos.

Não posso dizer que te amo por tua rebeldia displicente ou por teus trejeitos brutos e frágeis. De fato, tua crença ingênua em um amor que mereça odes e declarações tocantes não me agrada.

Se todavia tu exiges uma confidência amorosa, Amanda, caso aceites que eu não acate a dissimulação, falarei muito brevemente sobre meu amor por ti.
Amo-te somente por me sentir incompleto, amputado da esperança que movia minha infância. Amo-te apenas para ter compensadas as minhas próprias deficiências... Soa reconfortante para ti?

Cavalos Alados

Flectere commodius validas quam frangere vires

Saúdo-te, Cecília, por tua rebeldia exuberante, mas peço que não te desgarres por completo da apatia. Sei que te sacias apenas ao vislumbrar ânsia maior, sei que não vês razão em descobrir para ti o que já foi desbravado e sei que esperas inquieta por algo menos palpável que teu cotidiano. Porém, trate de ter cuidado com as convicções.
Pertinácias confundem a rotina tanto quanto supostas intervenções divinas. Em certas horas, Cecília, insurgências são meras demonstrações de ignorância quanto à ocasião, pois nem todo passo carece de seu próprio marco.
Basta que não te percas por ter sempre paradeiro, nem emudeças por bradar tantos caprichos. Basta, Cecília, que não te faças solitária por aceitar cultivar apenas as paixões. Podes até ignorar calendários a fim de tratar todo oriente como acaso, mas nunca te ampares nos sonhos em nome de uma realidade que apenas a ti pertence.
Envolta em debates solitários, tramas réplicas que satisfaçam qualquer uma de tuas interrogações e te contentas com tua sabedoria conveniente. E te crês sabedora. Sei, porém, inquieta Cecília, que nem sempre persuades a lucidez e, em dados ensejos, não te convences de tua própria verdade: e é a isso que peço te apegues.

Voto Perpétuo

Finis alterius malis gradus est futuri

Corro deixando nacos dos pés pelo asfalto tenebroso, debando daquele que me assombra desde que tenho memória. Sei que logo eu serei alcançado, mas prolongo o suplício. Fujo, pois tomado por excitação me esqueço do terror que acompanha a paz cotidiana.
Corro tanto quanto posso, até estirar os músculos, banhar-me em suor e entorpecer toda percepção. Persigo aquele que me ilude desde que tenho pudor. Sei que suas passadas são tão largas quanto são curtas as minhas pretensões, mas nutro seu prazer em tripudiar sobre meu desespero. Sigo-o, pois, assim, motivo-me quanto a minha própria fuga.
Exausto, largo-me de joelhos e imploro por um armistício. Então, deixo que o Passado devore um bocado de minha alma, confiando em sua necessidade de me consumir por toda a vida, ao que o Futuro goza ao ver derramar os excessos que escorrem dos lábios grotescos do outro. Mesmo dilacerado sobrevivo, e sobreviverei enquanto amparar meus algozes, sustentando-os para que me consumam e, em seguida, deixem-me ir, dando início a novos tumultos.