Felicidade Presente

Felix est non aliis qui videtur, sed si

Eu sou, sim, um cara feliz, e não o digo por sarcasmo. Gozo quando me vejo diante de algo belo que permite contemplação ou quando sou tomado por euforia, solitária ou comum. De fato, estou quase sempre alegre. Porém, quando me ponho diante de qualquer ciência, acabo por me deixar cair em angústias.
O niilismo me toma por inteiro, pois reconheço os traços feios do que há a meu redor, contemplo suas formas bizarras e vislumbro um futuro caótico. Eu sofro, sim, pelos que estão sofrendo, mas pouco. O desalento maior vem por meus filhos e seus filhos: aflige-me hoje as frações de sangue e esperança que pretendo lhes transmitir.
Eu padeço apenas quando não me entretenho numa atividade egoísta qualquer, ou seja, sofro em ocasiões raras. Pois, ao me despir de martírios inúteis, não vejo como não ser feliz, como não gozar da maravilha de se ser burguês num mundo sempre amparado, de delícias imediatas e pássaros elegantes que fazem casa dos transformadores e natureza que tremula entre os cabos-elétricos.

Certas Crianças

Factes tua computat annos

Ao fugir, muitas vezes me confronto com certas crianças. Em algumas ocasiões, consolo-me com sua presença, mesmo sabendo que as assombro, em outras, sinto-me tão amedrontado quanto elas. Pois não posso dá-las coisa alguma, e a mim só resta tomar lembranças de um passado de presumida paz, memórias em meio a projeções opacas, onde mesmo temores são encarados como contentamento.
Crianças que jogam pelúcias pelos cantos, que se enfiam em vãos estranhos, que comem enquanto saltitam. Crianças que correm por cômodos inusitados, que chutam toda esfera que lhes aparece, que se escondem sob as cobertas. Crianças que conseguem confiar, que cultivam esperança de algo maior, que não têm pretensão de não ser criança.
Observo-as da calçada mais sombria ou dum canto inóspito da sala. Quando se excedem e se dão conta de minha presença, lançam um olhar de soslaio, como se esperassem por reprovação. Faço-me impassível, mas, ainda assim, as crianças contêm os sorrisos o quanto podem. Logo, vão se deixar eufóricas novamente, e gargalharão atrevidas, pois não sabem que presenciam a si próprias num futuro amargo.

Amor Reflexo

Necessitas caret lege

Eu tenho procurado em vão por uma garota com quem me identifique, já que sou narcisista e exijo do que me cativa que revele cada vez mais sobre mim. Espero encontrar nos olhos que me fitam o reflexo de minha própria agonia, um cenário com o qual eu me familiarize e onde eu possa fantasiar abrigo.
Por eu ser feio, a beleza não me seduz: quero confusões e horrores que me indaguem se eu próprio não sou mais torpe do que creio ser, pois, hoje, não admito ocultar minhas deformidades, pelo contrário, desejo ter alguém com quem possa compartilhá-las.
Eu já confundi por diversas vezes as garotas por quem me afeiçoei com as que acabei por idealizar, pervertendo, assim, qualquer valor que elas tenham me transmitido. Portanto, decidi que só quando ouvir confissões amarguradas, intencionais ou despropositadas, que me conduzam por um caminho obscuro demais para ser trilhado sozinho, eu enfim amarei e serei um par.

Estorvos Cativos

Minima de malis

Eu acreditava ser possível não encontrar obstáculos por evitar todos os caminhos, e não me preocupar com respostas por ignorar inquirições. Não me via no direito de julgar acasos, mas também resistia a qualquer dever. Dizia-me cansado demais para qualquer busca espiritual.
Mais tarde, exausto por fingir um falso desprezo por minha existência, eu me apeguei ao misticismo mais mundano. Tinha, então, o acaso como conseqüência de meus atos e seus desdobramentos eram ignorados em nome da confecção de uma nova casualidade.
Passados os gracejos hormonais, e já saciado por mediar todo o universo, eu me encontrei sem fé. Tendo meu espírito órfão aprisionado num corpo coxo, em diversas ocasiões desejei me tornar uma pessoa melhor, mas cada tentativa desaguava numa frustração vã.
Foi quando cresci. Não que tenha me rearranjado ou desde então rume ao Paraíso: eu apenas aprendi como distinguir meus feitios. Hoje, acolho minhas imperfeições e me sinto seguro e confortável por não tê-las mais espreitando meu cotidiano e amedrontando minha alma.