Ensaio Anatômico

Laedere facile, mederi difficile

Eis anseios frustrantes: querer libertar cada dedo de cada mão, querer arrancar cada fibra de cada nervo; arrebatar cada glândula de cada tecido e torcê-las, banhando os pés com malícias inconvenientes; decepar meu pênis, castrando qualquer tentativa de fuga do desespero.
Deformar os músculos da minha tez de forma que não saibam se rio ou choro, confundindo meus próprios sentimentos quando confrontado com espelhos; arrancar meus globos oculares, enfiá-los pela boca extorquindo os dentes com os punhos, rompendo os limites da laringe, e confrontá-los com minhas blasfêmias.
Sacar cada costela, atirando-me com ânsia aos músculos intercostais, chispando os dentes contra as sobras carnosas dos ossos; desamparar meu sangue do baço e colorir os azulejos com as emulsões polpudas de meu fígado de memórias angustiantes.
Tamborilar meu diafragma, estocando com força maior, até que esgarce, fendendo-se como que cortinas circenses, exibindo agruras cômicas; chupar meu apêndice como que jabuticaba; apartar meu ânus com meus fêmures; estender meu intestino, laçá-lo às luminárias e, já atado pelo cachaço, destituir os esteios das solas.

Águas Eternas

Guttatim pelagi perfluit omnis acqua

Entre as grades da janela saltam águas de uma chuva que padece. Complacente, retêm-se entre o ar e a rotina sem se aventurar em tempestade. Covarde, permite-se morrer sem lutar, deixando-se em túmulos entre o asfalto – em plácidos anéis, divergentes, pois devem disfarçar sua monotonia, cada qual abrindo diante de meus olhos um túnel de lembranças, inclusive daquilo que cisma em não acontecer.
Como se, em lugar das nuvens turvas e sombrias desta chuva pálida, meu passado cobrisse a cidade, e meus arrependimentos, em lugar do vapor, fundissem-se em água, gotejando tudo o que já fui de turvo e sombrio, libertando, assim, a razão de meu desespero, o que me percorre de mais doloroso: a certeza de que, sob minha alegada ignorância, eu sei quem eu realmente sou.
Cada lágrima despendida de tais nuvens, cada vez mais lentas em seu caminho, amparadas por seu destino de incomodar cada superfície, perdem-se entre as dores e o lodo, enquanto nego a questionar às minhas mágoas por que, mesmo sabendo da eternidade destas águas, eu não consigo ir para longe das grades desta janela.

Parafraseio Nietzsche

Morienti cuncta supersunt

Já não me importa se renascemos ou morremos ao velar nosso cotidiano. Se não me restam certezas, não cultivo dúvidas sobre minha ignorância. Nada mais se faz valoroso ou indispensável quando confrontado com minha insignificância.
Quando encaro propensas boas ações, sofro pela desconfiança. Hoje, apenas as crueldades menos pueris distraem minhas frustrações. Portões foram cerrados e minha pureza se perdeu em meio às sombras do esclarecimento adulto.
A angústia, que outrora me parasitara, tornou-se minha hospedeira. Já não me diferencio do que há de doce e amargo em mim. Sou, para meu próprio paladar, uma massa intragável que não se distingue entre saborosa e ascorosa.
Saúdo Zaratustra, mas ignoro ter minha mediocridade compensada por quaisquer heroísmos. Parafraseio Nietzsche: Deus morreu, sim, mas foi quando eu já não pude mais crer em mim mesmo.

Vil Parasita

Hodie mihi, cras tibi

De súbito, detiveste-me entre as tuas mãos/Sem tolerar fuga ou resgate pela solidão/Permitiste-me como único prazer viver um futuro incerto/Deixaste-me temeroso por ter o pulso liberto.
Hei-me atado à tua cabeceira sem me rebelar por alforria/Ignorando teu rancor por eu me submeter todo o dia/Hei-me avilto, o vil parasita que sorve tua paz para si/Esperando encontrar em ti veias e capilares que não tenham fim/Hei-me em tronco, em cruz sacrificado pelo acaso/Porém, embriago-me em dor e por sofrimento sou sanado.
E caso me libertes, a mim restará baixa vingança/Ver-te-ei sofrer por me deter, então, apenas como vaga lembrança/Pois estarei em teu leito, teus pés enrijecidos e teu soro/Sob as tardes encortinadas, da solidão exasperada serei teu único consolo/Consumirei tua memória e tragar-me-á junto a teus comprimidos/Quando cederes às dores, far-me-ei os lenços e travesseiros que morderás para abafar teus gemidos...
Como se abafasse um pedido de perdão.