Abismo Adiante

Abyssus abyssum invocat

Sou tão mais fundo que quando me deparei com o que há sob minhas convenções eu não avistei nada senão o breu de um abismo enigmático. Por saber que eu me confrontaria com humores ainda mais vergonhosos do que os que habitam a superfície, não pude explorá-lo, logo, restou-me como conforto me apegar à mais oportunista fé na incerteza.
Hoje, sofro por ter me deparado com o precipício, arrependo-me por ter caminhado para longe da campina da mediocridade, lastimo cada passo dado rumo à perdição inevitável. Quisera eu não ter buscado a lucidez, não ter me confrontado, no último terço da jornada, com a presença tátil da incerteza, posta sentada sobre um trono de vermes, com as vestes decompostas e as vísceras ainda banqueteando os carniceiros.

Padeço da conquista do desconhecido que, afinal, parece ter sido forjado por mim. Agora, não posso retornar para onde não pertenço mais, nem conseguiria ousar um passo adiante, entregando-me à queda, portanto, cá estou sofrendo da aflição da descoberta que se confunde com as sombras, para sempre diante do abismo de minha essência.

Vastidão Estéril

Bella geri placuit nullos habitura triumphos?

Parte do que há aqui não passa de entulho. Muito de mim são meros escombros, ruínas num cenário desolador, destroços de um passado malvisto, bombardeados esporadicamente pelo arrependimento, aquele tirano. Se tento erguer alicerces, o sítio desgraçado se vê novamente sob ataque.
Mesmo depredada, a vila ampara uns parcos sentimentos que sobrevivem fazendo de seu cotidiano par do caos que habitam: ferem-se por aconchego, abusam-se por arrebatamento, devoram-se por fartura. Sua existência está fadada a passar por penitência.
Esgueiram-se por entre memórias explosivas, convenientemente enterradas sob o vilarejo degradado, sedentas por mutilar os sobreviventes subversivos. Parem seus descendentes entre rejeitos inativos, educam-lhes até que se tornem adversários e se vejam obrigados ao canibalismo.
Há uma vastidão estéril em mim. Terras ignoradas ou temidas pelo regime que me declara homem, um solo contaminado pelo sofrimento mais mesquinho, habitado por criaturas indecorosas. Se tento erguer alicerces, vejo que já não há mágoa que caiba em tal paisagem maldita.

Confidência Amorosa

Veritas et rosae habent spinas

Tu nunca ouviste, Amanda, que não se deve perguntar por que se ama? Pois então imagines que a resposta não te traga o conforto que esperas e sim um terrível incômodo... Não, se quisermos ser honestos, não podemos dizer porque amamos.

Não posso dizer que te amo por tua rebeldia displicente ou por teus trejeitos brutos e frágeis. De fato, tua crença ingênua em um amor que mereça odes e declarações tocantes não me agrada.

Se todavia tu exiges uma confidência amorosa, Amanda, caso aceites que eu não acate a dissimulação, falarei muito brevemente sobre meu amor por ti.
Amo-te somente por me sentir incompleto, amputado da esperança que movia minha infância. Amo-te apenas para ter compensadas as minhas próprias deficiências... Soa reconfortante para ti?

Cavalos Alados

Flectere commodius validas quam frangere vires

Saúdo-te, Cecília, por tua rebeldia exuberante, mas peço que não te desgarres por completo da apatia. Sei que te sacias apenas ao vislumbrar ânsia maior, sei que não vês razão em descobrir para ti o que já foi desbravado e sei que esperas inquieta por algo menos palpável que teu cotidiano. Porém, trate de ter cuidado com as convicções.
Pertinácias confundem a rotina tanto quanto supostas intervenções divinas. Em certas horas, Cecília, insurgências são meras demonstrações de ignorância quanto à ocasião, pois nem todo passo carece de seu próprio marco.
Basta que não te percas por ter sempre paradeiro, nem emudeças por bradar tantos caprichos. Basta, Cecília, que não te faças solitária por aceitar cultivar apenas as paixões. Podes até ignorar calendários a fim de tratar todo oriente como acaso, mas nunca te ampares nos sonhos em nome de uma realidade que apenas a ti pertence.
Envolta em debates solitários, tramas réplicas que satisfaçam qualquer uma de tuas interrogações e te contentas com tua sabedoria conveniente. E te crês sabedora. Sei, porém, inquieta Cecília, que nem sempre persuades a lucidez e, em dados ensejos, não te convences de tua própria verdade: e é a isso que peço te apegues.

Voto Perpétuo

Finis alterius malis gradus est futuri

Corro deixando nacos dos pés pelo asfalto tenebroso, debando daquele que me assombra desde que tenho memória. Sei que logo eu serei alcançado, mas prolongo o suplício. Fujo, pois tomado por excitação me esqueço do terror que acompanha a paz cotidiana.
Corro tanto quanto posso, até estirar os músculos, banhar-me em suor e entorpecer toda percepção. Persigo aquele que me ilude desde que tenho pudor. Sei que suas passadas são tão largas quanto são curtas as minhas pretensões, mas nutro seu prazer em tripudiar sobre meu desespero. Sigo-o, pois, assim, motivo-me quanto a minha própria fuga.
Exausto, largo-me de joelhos e imploro por um armistício. Então, deixo que o Passado devore um bocado de minha alma, confiando em sua necessidade de me consumir por toda a vida, ao que o Futuro goza ao ver derramar os excessos que escorrem dos lábios grotescos do outro. Mesmo dilacerado sobrevivo, e sobreviverei enquanto amparar meus algozes, sustentando-os para que me consumam e, em seguida, deixem-me ir, dando início a novos tumultos.

Felicidade Presente

Felix est non aliis qui videtur, sed si

Eu sou, sim, um cara feliz, e não o digo por sarcasmo. Gozo quando me vejo diante de algo belo que permite contemplação ou quando sou tomado por euforia, solitária ou comum. De fato, estou quase sempre alegre. Porém, quando me ponho diante de qualquer ciência, acabo por me deixar cair em angústias.
O niilismo me toma por inteiro, pois reconheço os traços feios do que há a meu redor, contemplo suas formas bizarras e vislumbro um futuro caótico. Eu sofro, sim, pelos que estão sofrendo, mas pouco. O desalento maior vem por meus filhos e seus filhos: aflige-me hoje as frações de sangue e esperança que pretendo lhes transmitir.
Eu padeço apenas quando não me entretenho numa atividade egoísta qualquer, ou seja, sofro em ocasiões raras. Pois, ao me despir de martírios inúteis, não vejo como não ser feliz, como não gozar da maravilha de se ser burguês num mundo sempre amparado, de delícias imediatas e pássaros elegantes que fazem casa dos transformadores e natureza que tremula entre os cabos-elétricos.

Certas Crianças

Factes tua computat annos

Ao fugir, muitas vezes me confronto com certas crianças. Em algumas ocasiões, consolo-me com sua presença, mesmo sabendo que as assombro, em outras, sinto-me tão amedrontado quanto elas. Pois não posso dá-las coisa alguma, e a mim só resta tomar lembranças de um passado de presumida paz, memórias em meio a projeções opacas, onde mesmo temores são encarados como contentamento.
Crianças que jogam pelúcias pelos cantos, que se enfiam em vãos estranhos, que comem enquanto saltitam. Crianças que correm por cômodos inusitados, que chutam toda esfera que lhes aparece, que se escondem sob as cobertas. Crianças que conseguem confiar, que cultivam esperança de algo maior, que não têm pretensão de não ser criança.
Observo-as da calçada mais sombria ou dum canto inóspito da sala. Quando se excedem e se dão conta de minha presença, lançam um olhar de soslaio, como se esperassem por reprovação. Faço-me impassível, mas, ainda assim, as crianças contêm os sorrisos o quanto podem. Logo, vão se deixar eufóricas novamente, e gargalharão atrevidas, pois não sabem que presenciam a si próprias num futuro amargo.

Amor Reflexo

Necessitas caret lege

Eu tenho procurado em vão por uma garota com quem me identifique, já que sou narcisista e exijo do que me cativa que revele cada vez mais sobre mim. Espero encontrar nos olhos que me fitam o reflexo de minha própria agonia, um cenário com o qual eu me familiarize e onde eu possa fantasiar abrigo.
Por eu ser feio, a beleza não me seduz: quero confusões e horrores que me indaguem se eu próprio não sou mais torpe do que creio ser, pois, hoje, não admito ocultar minhas deformidades, pelo contrário, desejo ter alguém com quem possa compartilhá-las.
Eu já confundi por diversas vezes as garotas por quem me afeiçoei com as que acabei por idealizar, pervertendo, assim, qualquer valor que elas tenham me transmitido. Portanto, decidi que só quando ouvir confissões amarguradas, intencionais ou despropositadas, que me conduzam por um caminho obscuro demais para ser trilhado sozinho, eu enfim amarei e serei um par.

Estorvos Cativos

Minima de malis

Eu acreditava ser possível não encontrar obstáculos por evitar todos os caminhos, e não me preocupar com respostas por ignorar inquirições. Não me via no direito de julgar acasos, mas também resistia a qualquer dever. Dizia-me cansado demais para qualquer busca espiritual.
Mais tarde, exausto por fingir um falso desprezo por minha existência, eu me apeguei ao misticismo mais mundano. Tinha, então, o acaso como conseqüência de meus atos e seus desdobramentos eram ignorados em nome da confecção de uma nova casualidade.
Passados os gracejos hormonais, e já saciado por mediar todo o universo, eu me encontrei sem fé. Tendo meu espírito órfão aprisionado num corpo coxo, em diversas ocasiões desejei me tornar uma pessoa melhor, mas cada tentativa desaguava numa frustração vã.
Foi quando cresci. Não que tenha me rearranjado ou desde então rume ao Paraíso: eu apenas aprendi como distinguir meus feitios. Hoje, acolho minhas imperfeições e me sinto seguro e confortável por não tê-las mais espreitando meu cotidiano e amedrontando minha alma.

Culpa Nata

Anulus aureus in nare suilla

Carrego chumbo sobre os ombros, pois nasci burguês. Beneficiado entre tanta miséria, deparo-me com dilemas dispensáveis ao jovem proletário. Não sei se devo usufruir do privilégio, já que o mundo foi talhado aos ricos, mas o Céu só se permite aos pobres. Caso redimido, vejo-me fadado ao limbo dos malditos justos, mesmo que leve uma vida virtuosa.
Eu não posso ser feliz, já que há tantos condenados à depravação da pobreza material ao meu redor. Também não posso ser triste, pois desdenharia da dádiva ocasional que Deus derramou justo sobre minha testa.
Entre tanta confusão, rogo que permitam que, firmado em minha consciência angustiada, eu me poste mais à esquerda política, entregando apoio a movimentos que se exibam revolucionários. Perdoem-me, enfim, caso tal redenção desesperada acabe por ocasionar ainda mais almas encarnadas no antro social dos propensos ao Paraíso.

Best-Seller

Quantum quisque se ipsum facit, sic fit ab amicis

Dizem que eu sou um cara afortunado, que posso abrir qualquer porta que me estacar e ir para onde eu quiser. Pena eu não saber para onde ir. E mesmo que me impusesse um destino acredito que eu preferiria estar aqui, onde nasci estacado.
Dizem que eu posso ter qualquer concidadão a meus pés, que posso carregar o mundo todo nas mãos. Pena eu saber que tais proporções são desvairadas. E caso fosse tão grande eu sentiria falta do anonimato.
Dizem que eu posso fazer um corredor do labirinto de meus dias, que posso curar minha angústia injetando uns mililitros de céu-azul nas veias. Basta que eu abra as janelas e saiba ministrar uma seringa para ter toda a paz que quiser.
Por trinta reais não-reembolsáveis recebo toda a ignorância de que preciso. Garantem que se eu fizer uso correto do produto terei toda a lucidez necessária para ver o quanto eu sou um cara afortunado.

Testamento Precavido

Omnia cinis aequat

Se acaso eu morrer amanhã, desejo que nada daquilo que eu tenha escrito seja tornado público. Meus manuscritos e todo os textos impressos devem ser reciclados. Quero que se livrem de tudo que tenha me pertencido.
Se possível, gostaria que meus órgãos fossem doados. Exijo ser cremado, pois não admito ocupar um centésimo de are que seja. Minhas cinzas devem ser deixadas na primeira poça que se formar no terreno baldio mais próximo.
Não aceito que se realize funeral ou qualquer qualidade de rito. Peço que não entoem ladainhas religiosas e que poucos se sintam na obrigação de se comover com minha morte. Que todo o processo corra sem rodeios e meus resquícios sumam logo da rotina dos indivíduos mais íntimos.

Bona Fide

Alterius non sit, qui suus esse potest

O gosto por escrever me trouxe o medo do que são capazes as palavras, por isso as censuro mesmo quando sei que queres me ouvir. Por outro lado, sei do valor do silêncio e, ao exigir diálogos tácitos, certas vezes, basta-me escutar as vozes que cada feição emite.
Dito isso, resta declarar que eu te perdôo, Lara, por teu segredo. Mesmo que contemple outra mentira em tua face, eu sempre te pouparei de qualquer constrangimento, pois, se mentes e eu vejo que dissimulas, trata-se de um momento autêntico.
Mais do que isso: tu és mulher. Sei que, desde os primórdios, resta como arma às mulheres mentir contra seus algozes. Sou varão e quero te limitar a meus braços, e a meus pés, e isso faz de mim teu carrasco enamorado.
Também quero que saibas, Lara, que enquanto eu estiver aqui, tu poderás mentir. E não te preocupes jamais, pois, posso parecer lúcido, mas não deixo de ser homem, logo, quando quiseres me manipular, conseguirás (mostramo-nos asseados, mas ainda somos bestas).

Euforia, Euforia

Crescit in egregios parva juventa viros

O comboio colorido foi dar numa rua sem saída e o motorista, talvez tomado pela exaltação pueril que invadira sua tarde, acabou por entalar as carruagens ocupadas por crianças eufóricas entre duas esquinas. Da janela de casa, assisti ao alvoroço de infantes que conjeturavam desastres (eu estacara diante do cenário por viver momentos angustiados – e dizem que não há nada mais aprazível que contemplar um bando de crianças comovidas). O condutor tentou se livrar do apuro em que se metera saracoteando a locomotiva ora para cá ora para lá, e os meninos sibilavam, torcendo para vê-lo bater.
E eu também berrava e cantava hinos e provocava os emburrados e me dirigia às bordas como se quisesse ganhar as ruas... Daí tia Patrícia me tomou pelo braço e me fez sossegar entre os mais comportados, junto às professoras. Eu obedeci, pois há pouco tivera que passar uma longa hora sentado no canto da sala de aula, esperando que uma maldita lição de artes marciais, cuja submissão exagerada me desagradava, acabasse e fizesse os berros sincronizados cessarem.
E eu olhava de esguio as meninas tímidas que pareciam sentir asco da alegria exagerada que as cercava, como se já fossem adultas infelizes... Daí eu me recordei de seu comprometimento desgostoso de decorar os passos e trejeitos da quadrilha (da qual fugi) e mais tarde reproduzi-los em frente a velhos burlescamente encantados com toda aquela humilhação. Por me aproveitar cinicamente das distrações das sentinelas para voltar-me aos convivas mais entusiasmados, recebi um ultimato de tia Silviana. Eu cedi, pois há pouco ela me despira sem qualquer sobreaviso, exigindo raivosamente que eu fizesse parte de uma absurda aula de natação.
E os garotos com aparência saudável zombavam sem pudor do meu constrangimento, e eu revidava até me cansar... Daí eu me encolhi e suportei como uma rocha cinematográfica os papéis lambuzados de um cuspe bélico asqueroso que atingiram minha nuca. Por se impressionar com a malhação covarde, tia Márcia sentou-se a meu lado para me guarnecer. Mas lembrei-me de que fora ela quem me fizera levantar com as calças tomadas por merda numa fétida aula de matemática. E, arruinado pela lembrança, eu tratei de morrer para as horas.
Os vagões, enfim, desprenderam-se da armadilha – as crianças, já entediadas, ao ver que voltariam a balançar entre as ruas, agitaram-se como antes: seu espírito não ampara as impressões da hora passada, mas, sabe-se lá por que, sua memória guardará cada ato da infância desmedida. Da mesma forma que eu trago em mim, como cicatrizes, as recordações vívidas de uma época que fazia valer lembranças.

Quarto Mandamento

Qui honorat parents suos, seipsum honorat

Eu acho que meus pais sofrem por mim, pois mamãe ora como se rasgasse as próprias carnes, dando-se ao furor mais passível da compaixão mais sincera, a certo êxtase que não envolve fé, apenas uma encenação patética; já papai declara que sua expectativa teve um ano subtraído, uma idade descartada, um imóvel extraviado: o coitado se faz miserável para me ver abençoado com a vida burguesa mais cômoda e um belo espólio (daqueles cobiçados por quem não sabe da fealdade do contentamento).

Sei que meus benfeitores padecem da maior amargura, aquela em que resta apenas resignação, porém, não compartilho de sua dor, já que contemplo sempre a mesma estrada que leva sempre ao mesmo breu, assim, não percebo os extravios que trazem tanta desgraça. Mas, agora, para que eles não sofram mais, decidi fazer jus a minha herança: desde já não me deixarei destacar da sanidade pactuada entre os mortais da vila decadente – subsistirei tão ordinário quanto exigir a saúde de meus progenitores.
Pela sanidade de papai pleitearei um cargo público, tornando-me um funcionário bem-acomodado do Estado, onde se obra pouco sem supervisão alguma, um burocrata mesmo nos momentos de ócio, restringindo as horas de viver euforia ou retidão, rubricando dez vias antes de qualquer pensamento descabido; por mamãe terei fé (ou todas elas), prosseguirei, sim, meu caminho extraviado, mas apelarei aos mais diversos dogmas quando me crer perdido, trazendo uma penumbra de lucidez àquelas mesmas veredas.
Constituirei família, concebendo um filho apenas, já que descendentes custam caro, e carregarei meu breve cotidiano entre os limites da segurança financeira, transbordando vez ou outra as fronteiras morais. Serei, enfim, tão ditoso quanto exige o meu legado, promovendo churrascos e cervejadas por entre onde as crianças alheias correrão com a minha cria, todas ignorantes do futuro que lhes vem sendo traçado entre um gole e outro. Pois repetirei o erro mais cruel de meus pais: admitirei, sim, minha estupidez, mas exigirei da prole que a assuma e perpetue.

Ser Ordinário

Associat dives tumidos opulentia fastus

Se meus humores fossem apaziguados, hoje eu estaria me graduando como odontólogo. Trabalharia curvado sobre os hálitos da comodidade. Logo, ganharia bem, compraria um belo carro e foderia belas mulheres. Mais tarde, adquiriria uma bela casa para viver ao lado de uma bela esposa, que pariria belas crianças, que distrairiam meu belo matrimônio enquanto eu comeria uma bela amante.
Mas eu não fui forjado para alegrias burguesas. Escrevo porque, acomodado sobre minha afasia burguesa, não faço nada mais. Como não me permito ser feliz, admito me tratar como especial, como se requisitasse compensação por minha desventura. E, por ter que ser distinto, exponho toda sorte de infortúnios quando escrevo.
Torço por viver em uma civilização sem qualquer escrúpulo. Quando saio às ruas dissimulo, e me incomodo por não saber se todos disfarçam seus sentimentos. Convenço-me de que sou tão caridoso e viciado quanto todo religioso. Cego-me, e trato meus anseios como ordinários. Então, narro-me como se eu fosse natural.

Remorsos Futuros

Ex ore parvulorum veritas

Era uma anciã solteira, sua casa era simplória, pouco arejada, de um odor misterioso, tudo que remetesse à compaixão mais fraterna; o embrulho, porém, era bonito demais para uma mera caixa de bombons. Eu deveria ter seis anos quando atirei para longe tudo aquilo que estivesse ao alcance das mãos, inclusive o dito presente, bradando que não o queria. Passaram-se uma dezena de anos, uma centena de convulsões hormonais e um milhar de tumultos íntimos para que eu me arrependesse de ter feito aquilo.
Eu não gosto de crianças, pois repudio seu maquiavelismo tão bestial, detesto sua sinceridade ou dissimulação sempre despudoradas, invejo sua maldade justificável e, acima de tudo, odeio-as por não poder usar das mesmas armas que elas. Estou em desvantagem por ter que me inserir na dita Civilização, aquele algo que nos faz extrair do âmago tudo o que não existe intrínseco ao homem, já as crianças, seres brutos, têm a seu lado a pureza desavisada que deus algum ousaria condenar. Hoje, há educadores que escarnam o velho conceito de molecagem saudável e prezam a civilidade precoce, mas no mundo corporativo poucos filhos têm os pais presentes, logo, as tentativas de se criar uma geração consciente do perigo de se ser humano não passam de retórica.
Eu não vislumbro fuga da prisão moral da sociedade, ainda mais por ter os punhos presos aos grilhões da hipocrisia burguesa. Como ente civilizado, a dor de meus erros vem dos remorsos que sei que experimentarei quando eles atingirem algum transeunte (mesmo quando eu extrair algum prazer de meu desacerto), mas, considerando minha incrível habilidade em machucar meus concidadãos, não pediria a gênio algum ser incapaz de semear mágoas, nem mesmo imploraria para que minhas vítimas acordassem livres das lembranças de minha agressão: seria, pois, fabuloso se eu pudesse cometer meus erros adultos e tratá-los com aquela displicência da infância despudorada.

Whitefaced Clown

Prudens in loquendo est tardus

¿Quem diria que eu, esta criatura de melancolia desmedida, ainda seria tratado com expectativas cômicas? Pois acontece que hoje sou um disputado piadista. Mas não culpo os expectadores desavisados, já que fui eu quem deu pretexto a tal confusão. E isso por conviver comigo mais do que se faz suportável e conhecer minha vertente áspera e tóxica.
Como receio ferir os convivas com lucidez ou loucuras inconvenientes demais, travisto-me como matéria palpável e, em muitas ocasiões, assimilo e lapido a estupidez comum, refletindo-a numa encenação patética. Sou aquele mico que saracoteia em frente à platéia. O pobre primata feito cativo e condenado às vestes e trejeitos do espectador não muito racional.
É assim que, nas parcas horas sociais do dia, eu me poupo da convivência com meu id, deformando-o em massa irreconhecível. O preço dessa liberdade viciosa, porém, já me incomoda. Não me importo por me flagrar irreconhecível diante das expectativas alheias, mas, às vezes, após ser mera marionete da necessidade social, questiono as tentativas de me trazer de volta às bases de meu caráter. Temo que, quando não restar-lhes vigor, eu possa acabar me acomodando entre as planícies menos tortuosas da mediocridade.

Codornas Assadas

Inops, potentem dum vult imitari, perit

O mercado cria datas comemorativas ou as toma para si e faz com que elas se perpetuem. Consumidores ou não, nós as acolhemos, pois em nosso cotidiano tão exigente não há tempo para ladainhas afetivas. Convencionamos, então, confraternizar-nos em uns parcos dias festivos. E foi assim que eu vim parar neste restaurante burguês ao lado de minha família (cabe dizer que a meu pai, o homenageado do bimestre, tal ritual também não agrada, tornando esta ocasião ainda mais torpe).
Começa-se por esperar num ambiente conjugado invadido por um sol impiedoso disputando qualquer canto com outras vítimas afortunadas (ingênuas ou sádicas), que se amontoam como etíopes subnutridos em frente ao acesso principal, de onde se vê famílias se esbaldando freneticamente em cada um dos pratos mais exóticos, para depois jogar suas panças para debaixo da mesa enquanto se segura uma xícara irrisória, ignorando os clamores silenciosos do garçom, que deseja faturar com aqueles que aguardam famintos do lado externo.
Senhoras que exibem quilates às dezenas não deixam de cerimônia e, entre gargalhadas aflitas, tratam de chafurdar em seus pratos – cientes do desespero que as cercam, esforçam-se por exibir seu regozijo de forma dramática. Cadeiras se chocam contra mesas e traseiros desavisados fazendo trepidar um naco de javali; serventes se esquivam com perícia e angústia de homens gordos que exibem um penduricalho eletrônico para cada reentrância de seus trajes sempre iguais.
Já postos em nossos lugares, vemos que não há porto-seguro entre tanta tormenta: como se fossemos nós as vítimas do forno predatório, esprememo-nos entre os burgueses que se confundem inscritos num aro de conveniências ardoroso. E somos arrastados por travessas que amparam cadáveres de animais que eu não sabia ser passíveis de se tragar; mergulhamos em caldos e nos untamos com óleos viscosos, mastigamos violentamente, num silêncio exasperado por toda comoção que nos cerca.
Pagos os tributos por nosso próprio sucesso – inclusos os coquetéis consumidos num ato inocente ou desesperado no pátio e cafés ínfimos de valor exorbitante – somos finalmente atirados à sarjeta adornada por belos carros asiáticos. O estômago, antes confuso, agora se dá conta de seus compromissos. A brisa suave saúda as axilas besuntadas e conclama às pazes que desçam às voltas da família burguesa que deixa o recinto satisfeita, pois não se vale da ocasião, e sim do ensejo: uma rara reunião familiar a ser guardada e consumida por anos.

Manifesto Elucidista

Ouço falar, deliciado, da desordem do século que passou... ¿Mas, e o desarranjo contemporâneo, será que não o percebem?

O capitalismo eleva os produtos internos brutos; os centros comerciais têm belos vernizes; as conjecturas, os gráficos são sempre otimistas... Os espíritos, porém, são de uma decadência desoladora.

Confundimos conforto e conformismo; paz e passividade... Pazes malignas, como parasitas que nos sangram, consomem-nos sem que percebamos.

Pois, então, demo-nos ao totalitarismo, ao líder bélico dotado das mais puras intenções... Dissimulemos nossos fins anarquistas nos entregando a homens de toda estirpe de ideologia: deixemos que eles destruam enquanto tentem erguer.

Contestemos este progresso doloroso que nos faz revisitar os desalinhos do passado, mas, agora, tomando-os por prosperidade... Tenhamos consciência de que representamos o futuro do porvir que não sucederá; a inovação que perpetuará o atraso; a evolução que fará retornar ao caos.

¡Fartemo-nos da ração estatal!... Usemos do orgulho de se ser gado; não nos esqueçamos da pátria, a Nação do futuro que não virá: publiquemos as belas estampas de nossa prosperidade; consolemos este povo até que seu país, enfim, rua.

¡Façamos com que se perceba o caos!... Não pela humanidade, mas, sim, em nome da arte; e, para tanto, confundamos mesmo os mais perplexos: façamos haver guerras por biscoitos ou religião.

Sejamos ásperos e inclementes: ajamos como os mais apáticos entre os acomodados, esperando desde já pela nova ordem... Pela perpetuação do pouco de valor que conquistamos ao longo desses duzentos mil anos, tratemos de conspirar por nossa extinção.

Consumamos Deus e drogas até que se esvaiam; até que não nos sobre um grama de fé... Então, lúcidos como bestas, reconstruamos apenas pilares que sustentaram construções sem pecados.

Quando ruírem os paços e obeliscos, terminemos de implodir toda estrutura e convençamos as almas a se explodir... Em nome da conservação do incômodo, questionemos toda paz que vier a se suceder.

Paraíso Ideal

Ut quemque Deus vult esse, ita est

Ciência e toda religião coincidem numa única especulação: multiplicai-vos. E isso porque tudo de efêmero almeja ser eterno, e aos homens não há subjetivismo ao deixar um suplente à comunidade desfalcada - ainda mais ao tratar de deixá-la mais eficiente à sua prole, e adaptar tal progênie para que persista em seu rumo. A meus olhos, então, o conceito de um Paraíso além-vida à espera dos cidadãos disciplinados de uma dita sociedade acaba por antagonizar com a própria existência humana.
Por imaginar que a esperança do conforto post-mortem fora criada como compensação à vida de limitações em nome da comunidade meus argumentos soavam como mera provocação. Mas, se nos imolamos em busca de um sentido para tudo, contentamo-nos com um apenas. E, hoje, vejo que ao viver para a sociedade, sua manutenção e seu porvir, não preciso de outro prêmio que não partir conformado com minha atuação social. Logo, só me resta crer que o Paraíso não foi talhado como recompensa pela austeridade em vida, e sim pela anuência à instituição religiosa.
Todo Éden não passa de uma artimanha engenhosa que confronta aquele que vê esvair sua fé em tal igreja. Dito isso, proclamo minha redenção. Pois, se não tenho minha bestialidade limitada por dogmas, ainda sim conheço a moral da sociedade que habito, e por conhecê-la ainda melhor posso dizer que transbordo seus limites, agindo com mais rigor do que se faz necessário. Se não ajo bem por meu próprio conforto eterno, vejo num rumo sensato e ético um passo a menos entre a distância do mundo de meus descendentes e o tal Paraíso.

Glória, Glória!

Absque vado fluvius, nec stat sine pelice proles

Era uma vez um Estado não muito distante onde, em certa manhã, uma branda figura surgiu iluminada entre magníficas auréolas douradas, contornando os ventos e movendo as nuvens ao seu redor. Ela se proclamou a própria Ética. Os cidadãos, antes deslumbrados, ao tomar ciência de tal presença sagrada, julgaram-se abençoados. A população de tal Estado, então, pôs-se de joelhos, reverenciando aquela bela entidade, e não tardou para que todos os homens públicos do lugar se pusessem diante dela, igualmente embasbacados, tratando o seu como o mais afortunado entre os Estados.
Entre os murmúrios e as orações que se ouviam insurgiu uma voz que questionava tamanha benção: que, se fosse realmente milagrosa tal divindade, indicasse quais entre os homens públicos do Estado não mereceriam beijar os seus pés e louvar sua figura majestosa. A Ética, formosa em seus gestos, afável em suas feições, apontou suavemente seu indicador ao primeiro entre os homens de terno que se punham ante seus pés. Os cidadãos, pasmos, voltaram-se ao homem, que ajeitou sua gravata e, enquanto corria-lhe uma lágrima, pôs-se ao fim daquela fila. Antes que pudesse se refazer de tal choque, porém, a população do Estado viu que outro homem público já era denunciado pela Ética. Enquanto seguiam os burburinhos, outro e outro e, logo, todos os homens públicos do Estado foram, um por um, apontados pelo cadente indicador da gloriosa Ética.
Os políticos e burocratas, quando se amontoaram ante a população e sua censura, puseram-se, então, a difamar a suposta divindade, insurgindo contra sua validade. Como poderia um Estado de homens lúcidos, do século da ciência, creditar tanta confiança a uma figura mística e um suposto milagre? Como não exigir da tal entidade comprovação de suas denúncias? E, afinal, como poderíamos acreditar em nossos próprios olhos quando eles abusam de nossa própria razão?
Os cidadãos, então, sacudidos pelo discurso racional de seus representantes, abraçaram-se às pedras, telhas, puas e tijolos do redor e, antes que a entidade charlatã que se proclamava Ética pudesse reagir, atiraram aquilo que estivesse ao alcance das mãos na figura, que, assombrada, deu as costas àquele povo e nunca mais surgiu naquele Estado.

Contando Carneirinhos

Pater nimia indulgentia filios depravat;
matres omnes filiis in peccato adiutrices


À noite, quando busco contentamento que me permita adormecer, imagino como seria o dia seguinte caso meus pais morressem. Costumo vislumbrar acidentes automotivos, já que eu não suportaria acompanhar meus benfeitores, cada vez mais decadentes, da alcova ao leito hospitalar e, enfim, à agência funerária, nem mesmo que ambos fossem acometidos pela peste mais brutal. Contra aborrecimentos, dou-lhes uma morte súbita – e indolor, pois ainda me resta humanidade.
Dessa forma, eu me isentaria de qualquer vínculo com o exterior destas paredes (que julgo como as mais acolhedoras, pois me garantem aquela segurança que nunca encontrei em seio algum). Eu seria, então, livre para existir apenas para mim, vivendo um sonho belíssimo que confundiria solidão, despropósito e uma mediocridade dignificante, como conviria.
Eu gozaria ao me livrar de todos os seus bens, um por um, a custos módicos, assumindo uns poucos eletrodomésticos que me dão conforto e uns agrados dispensáveis; viveria só, num cômodo esquecido em meio ao subúrbio, sem freqüentar faculdades que não as minhas próprias; longe de banhos ou vaidades quaisquer, eu consumiria apenas a mim mesmo (e sopas instantâneas).
Não que eu tenha meus progenitores como entes maléficos: são, sim, pessoas torpes, como todas as outras, mas inofensivas. Odeio-os de forma singular somente por serem meus pais. Repudio-os por sustentarem referências que insisto em rejeitar; incomodo-me por exigirem um respeito que me nego a ceder. O que mais me inquieta, porém, é tê-los como o pretexto que me condena a perpetuar seus erros.
Livrando-me de sua influência ordinária, ao menos nessas fábulas, eu posso me entregar à existência maravilhosa e
vulgar que exijo para ser feliz. Satisfeito, enfim, por ter como limites apenas os meus próprios vícios, eu cerro os olhos e durmo como quem não tem consciência.

Amores Artrópodos

Amor opus laudat

Quando madura, a abelha-rainha deixa de botar ovos e sai da alcova pela única vez em sua vida. Os zangões, cavaleiros sem guerra da colméia, lançam-se atrás de sua alteza, que voa sedenta por paixões efêmeras. Em pleno vôo, os machões mais astutos fecundam-na. Gozando ou não, estarão condenados à morte: muitos perdem as vísceras junto à virgindade, os outros serão linchados pelas operárias ao retornar à colméia.
Há aranhas cujos machos são vinte vezes menores que as pretendentes. Muitas vezes, as fêmeas distraídas os confundem com o desjejum, mas os bravos enamorados continuam insistindo: invadem pé ante pé as teias da amada e copulam discretamente, sob pena de ter as vísceras vertidas em mingau caso peçam por alguma atenção.
Escorpiões e louva-deus são envenenados e decapitados por suas esposas depois do sexo. Poucos deles, raramente espertos, escapam do sacrifício. Se fossem homens, suas parceiras sanguinárias se frustrariam ao se virar armadas e se deparar com o amante vestindo as calças enquanto explica sua urgência em partir, pois no dia seguinte há um compromisso importante logo cedo.


Cadáveres Celestes

Finis coronat opus

Sob uma lua cheia indecorosa, eu, ora como poeta ora como lobisomem, cavalguei sobre o lombo de minhas frustrações, caindo bêbado numa sarjeta indigente, acomodando-me sobre o suor; os olhos embriagados, então, partiram em busca de referência e se depararam com as estrelas, muitas delas mortas há anos-luz, cadáveres celestes que se perpetuam, guiando homens pervertidos a mundos ingênuos.
Pobres estrelas, que não têm qualquer privacidade, bibelôs desalmados colecionados pelo homem, supostas fontes de inspiração a criaturas torpes, guias involuntárias do predador civilizado. ¿Se pudessem escolher entre se aniquilar logo ou se deixar abusar, será que cederiam pela vaidade?
Supus ser possível, também ao homem, fazer-se admirável depois da morte, ¿mas de que valeria restar como imagem ou memória, se tanto não atribui orgulho ou gozo? Mais vale morrer abraçado a tudo de si, levando ao túmulo contentamentos e reprovações. Era dia de coleta de lixo, minhas pretensões estavam envoltas num manto de fedor.

Julgamento Perpétuo

Bonis nocet qui malis parcit

Disseram-me que nossos entes são capazes de espelhar frações nossas. Se assim for, ao menos terei justificativa à parte de minhas confusões. Eu não me vejo refletido em qualquer pessoa com quem eu conviva ou já tenha convivido. Resta descobrir se por eu ser grotesco demais ou, simplesmente, por não reconhecer nenhuma de minhas faces. Sou, pois, um paradoxo que se confronta com outro e sai reformado do cotejo.
Foi buscando um rascunho de qualquer uma de minhas personalidades que eu encontrei um terapeuta. Hoje, trato-o por anjo: uma entidade que, vez ou outra, aparece iluminada por uma aura indecifrável extraviando minha rotina, declamando mantras estúpidos, impondo tarefas inúteis e tomando oferendas. É uma figura histriônica que joga as pernas sobre os braços da cadeira de seu consultório inóspito enquanto calcula as despesas a saldar ao final da sessão. Trato sua serenidade como impotência, assim como sua negação em admitir que eu tenha problemas psiquiátricos graves, sendo carente de drogas de tarja preta.
Meus pais mereceriam muito mais do que um mero parágrafo de um texto sem eixo que busca expurgar uns parcos ácidos nocivos de minha artéria lingual, mas terão que se contentar com tanto. Odeio meus progenitores, pois neles vejo reflexos: não vislumbro meu íntimo ou meus humores, mas, sim, meus pecados. Meus pais não me ensinaram nada além de assumir minha mediocridade em relação aos homens, ao ser supremo e ao destino que ele traça. Para me lembrar de tal condição, eles trazem em suas caras um arquivo capaz de portar resenhas de todos os erros que eu já cometi. Quando adentram em meu campo de visão, surgem como juízes que, debaixo de sua toga suada e fétida, calculam um castigo que nunca virá, já que não há sentenças – e nada poderia ser pior que isso – em julgamentos perpétuos.

Novelos Férreos

Amici, ad qui venisti?

Sua voz me assalta e me causa vertigens. Caio e me confundo com as tramas oblíquas de meus vínculos sociais, que logo serão rompidas pelas convulsões frenéticas de meu ego. Gracejos se distorcem entre os gases exalados pelo pavor; receio ter partes de mim tomadas pelo interlocutor e restituídas deformadas e irreconhecíveis. Da ignorância ou da prepotência, intrínsecas aos viventes, ressalto meu conhecimento de seus mecanismos e minha negação em contorná-los. Sou, pois, pior do que qualquer outro homem ignorante de si próprio, já que me creio conhecedor da nobre ciência da ignorância.
Por razão que não pretendo elucidar, decidi tratar de meus laços afetivos. Serão ao menos dois textos, tão cansativos e egoístas quanto todos os outros. Começo por dizer que o próprio afeto soa retórico para mim, não passando de mero acaso que lesa minha rotina. Condiciono meu contato com outros entes aos momentos de torpor, já que quando os defronto, nunca os consigo distinguir. Por isso, minhas parcas amizades são amparadas pela embriaguez, inaugurando aquilo que trato por afinidade alcoólica.
Se extraio prazer da Literatura, os habitantes de meu cotidiano são analfabetos; se me curvo à introspecção, meus convivas ocasionais se dão à euforia menos cordial. Combinamos por nosso desprazer pela vida, mas enquanto eu me afogo em nobre melancolia, meus companheiros se dão aos alucinógenos simplesmente por reconhecer sua inaptidão ao que quer que seja. Porém, como nos encontramos para bradar evoés, suas divagações imbecis simulam sintaxes a minha borracheira.
Quanto às garotas, apelo para que não exijam que eu exiba minhas reses, pois tive um único romance em minha vida. Poderia ter acumulados outras aventuras, mas aí não teria os dramas do amor singular a meu dispor. Se nossa paixão houvesse terminado em adagas ou pistolas, eu me permitiria seguir em busca de novas comoções, mas nosso rompimento foi tristemente amistoso. Não sofro por possuir apenas bocetas, sendo injuriado pela desconfiança das pequenas. Por ter tantos vértices, já não me identifico com as garotas simplórias que me rodeiam, e torço por encontrar uma dona balzaquiana que me dê liberdades e me demonstre métodos. Por hoje, confundo as normas da afeição enquanto me esqueço da funcionalidade dos orifícios.

Ensaio Anatômico

Laedere facile, mederi difficile

Eis anseios frustrantes: querer libertar cada dedo de cada mão, querer arrancar cada fibra de cada nervo; arrebatar cada glândula de cada tecido e torcê-las, banhando os pés com malícias inconvenientes; decepar meu pênis, castrando qualquer tentativa de fuga do desespero.
Deformar os músculos da minha tez de forma que não saibam se rio ou choro, confundindo meus próprios sentimentos quando confrontado com espelhos; arrancar meus globos oculares, enfiá-los pela boca extorquindo os dentes com os punhos, rompendo os limites da laringe, e confrontá-los com minhas blasfêmias.
Sacar cada costela, atirando-me com ânsia aos músculos intercostais, chispando os dentes contra as sobras carnosas dos ossos; desamparar meu sangue do baço e colorir os azulejos com as emulsões polpudas de meu fígado de memórias angustiantes.
Tamborilar meu diafragma, estocando com força maior, até que esgarce, fendendo-se como que cortinas circenses, exibindo agruras cômicas; chupar meu apêndice como que jabuticaba; apartar meu ânus com meus fêmures; estender meu intestino, laçá-lo às luminárias e, já atado pelo cachaço, destituir os esteios das solas.

Águas Eternas

Guttatim pelagi perfluit omnis acqua

Entre as grades da janela saltam águas de uma chuva que padece. Complacente, retêm-se entre o ar e a rotina sem se aventurar em tempestade. Covarde, permite-se morrer sem lutar, deixando-se em túmulos entre o asfalto – em plácidos anéis, divergentes, pois devem disfarçar sua monotonia, cada qual abrindo diante de meus olhos um túnel de lembranças, inclusive daquilo que cisma em não acontecer.
Como se, em lugar das nuvens turvas e sombrias desta chuva pálida, meu passado cobrisse a cidade, e meus arrependimentos, em lugar do vapor, fundissem-se em água, gotejando tudo o que já fui de turvo e sombrio, libertando, assim, a razão de meu desespero, o que me percorre de mais doloroso: a certeza de que, sob minha alegada ignorância, eu sei quem eu realmente sou.
Cada lágrima despendida de tais nuvens, cada vez mais lentas em seu caminho, amparadas por seu destino de incomodar cada superfície, perdem-se entre as dores e o lodo, enquanto nego a questionar às minhas mágoas por que, mesmo sabendo da eternidade destas águas, eu não consigo ir para longe das grades desta janela.

Parafraseio Nietzsche

Morienti cuncta supersunt

Já não me importa se renascemos ou morremos ao velar nosso cotidiano. Se não me restam certezas, não cultivo dúvidas sobre minha ignorância. Nada mais se faz valoroso ou indispensável quando confrontado com minha insignificância.
Quando encaro propensas boas ações, sofro pela desconfiança. Hoje, apenas as crueldades menos pueris distraem minhas frustrações. Portões foram cerrados e minha pureza se perdeu em meio às sombras do esclarecimento adulto.
A angústia, que outrora me parasitara, tornou-se minha hospedeira. Já não me diferencio do que há de doce e amargo em mim. Sou, para meu próprio paladar, uma massa intragável que não se distingue entre saborosa e ascorosa.
Saúdo Zaratustra, mas ignoro ter minha mediocridade compensada por quaisquer heroísmos. Parafraseio Nietzsche: Deus morreu, sim, mas foi quando eu já não pude mais crer em mim mesmo.

Vil Parasita

Hodie mihi, cras tibi

De súbito, detiveste-me entre as tuas mãos/Sem tolerar fuga ou resgate pela solidão/Permitiste-me como único prazer viver um futuro incerto/Deixaste-me temeroso por ter o pulso liberto.
Hei-me atado à tua cabeceira sem me rebelar por alforria/Ignorando teu rancor por eu me submeter todo o dia/Hei-me avilto, o vil parasita que sorve tua paz para si/Esperando encontrar em ti veias e capilares que não tenham fim/Hei-me em tronco, em cruz sacrificado pelo acaso/Porém, embriago-me em dor e por sofrimento sou sanado.
E caso me libertes, a mim restará baixa vingança/Ver-te-ei sofrer por me deter, então, apenas como vaga lembrança/Pois estarei em teu leito, teus pés enrijecidos e teu soro/Sob as tardes encortinadas, da solidão exasperada serei teu único consolo/Consumirei tua memória e tragar-me-á junto a teus comprimidos/Quando cederes às dores, far-me-ei os lenços e travesseiros que morderás para abafar teus gemidos...
Como se abafasse um pedido de perdão.

Iluminação Pública

Commoditas omnis fert sua incommoda

Preferia ser assaltado por pesadelos sombrios, sonhos obscuros, atormentados, vexados por mensagens ascorosas, mas minha cobiçada melancolia topa em sonhos eróticos e soberbos unicórnios alados.
Liquidifico-me entre as fronhas misturando coquetéis fármacos. Se ontem fiz de dois um, hoje, fiz de um erro todos - amanhã inventarei numerais.
Da janela, contemplo uma lua desolada. Consolo sua vaga lucidez, pois sei que não se pode enxergar as almas quando iluminadas por zinco ou néon.
Como há menos luar, sobrou-nos, da boa embriaguez, mera histeria. Daqueles crimes cometidos em nome da paixão restaram apenas os estupros de iluminação pública.

Feliz Pizza!


Dia dez de julho, o calendário se voltará irônico ao Brasil e o acaso nos sorrirá, deixando escapar uma gargalhada jocosa. Sim, pois, por uma daquelas coincidências que mais parecem ser caprichos divinos, o décimo dia do sétimo mês do calendário gregoriano vem sendo dedicado à Lei Mundial (e aí não se exclui Brasília) e à Pizza.
A pizza (para os napolitanos, picea) se tornou íntima dos italianos, pois era alimento destinado às classes humildes do sul da bota, mas tem a honra de sua concepção disputada por egípcios, gregos, babilônios e hebreus. O disco de massa assada com ingredientes por cima chegou ao estômago do rei Humberto I de Itália, e dali ganhou o mundo.
Da primeira pizzaria, a Port’Alba, ao desembarque junto aos imigrantes no Brasil, a pizza se revelou de preparos mil e ganhou lugar tanto em mesas nobres quanto humildes. O cotidiano de São Paulo e a massa se confundiram de tal maneira que os encontros amigáveis por fins de celebração e acordo acabavam ao redor de uma suculenta pizza.
Por imaginar que no Congresso os encontros entre aliados por conveniência acabem da mesma forma festiva, se convencionou dizer que as acusações a que eles deveriam responder — mas optaram por ignorar pelo bem da classe — acabaram em pizza.
Em pratos limpos, quer dizer que a Lei foi descartada, deixada no pratinho das bordas, enquanto um bando de criminosos, amigos até que isso seja conveniente, se uniram para manipulá-la em favor próprio. A expressão se tornou cotidiana e, nesses últimos anos, os brasileiros ouvem falar tanto em pizza no sentido figurado que podem acabar por se esquecer da iguaria italiana, o disco de massa assada com ingredientes por cima.
Enfim, ao que me motiva: feliz dia dez, feliz pizza! Que todos os nossos desejos se realizem! Daqueles que prezam pelo bem da justiça àqueles que anseiam o conforto do colarinho-branco, passando, é claro, pelos que pediram uma pizza de calabresa há mais de uma hora.

Ventre Crescido

Accepto damno januam cla

Cabia-me, como prisioneiro, tramar fugas viáveis. Mas eu não correspondia. Os rumores de que lá fora os homens tratavam de se exterminar consumiam meu ímpeto. Ademais, sabia que não havia Justiça que garantisse alvedrio aos homens livres.
Essa parca luz invade a cela bruta e úmida onde jazo trazendo imagens idealizadas do mundo além-grades (o asfalto que se move, as falsas esperanças que se reciclam e as vidas sacrificadas pelo sustento dos demais) e inibe qualquer impulso que estimule meus músculos definhados.
Estive ainda mais certo de meu destino recluso quando os carcereiros, num ato trocista, fenderam as portas de cada cela deixando um corredor patente entre os prisioneiros e a sua liberdade, e apenas dois ou três da multidão de detidos fétidos ousaram deixar a prisão.

Faça Primavera

Quae mala cum multis patimur leviora videntur

Faça primavera, faça outono/Não vejo por que reagir/Tento me libertar deste sono/Mas acabo por me deixar cair.
Faça primavera, faça outono/Se prometo revoltas minto/Dou-me ao banho morno/Mesmo que já esteja limpo.
Faça outono, faça primavera/Espero que obstruam passagens/Pois tal paz nos dilacera/Como rio brando sem margens.
Faça outono, faça primavera/Peço que bombardeiem a calma/Imploro por uma nova guerra/A fim de distrair minha alma.

Esclarecimentos Possíveis

Se você ou outros chegaram até aqui, foi por um acaso inusitado. Porém, num ato de extrema boa-vontade, darei alguns esclarecimentos aos intrusos. Começo por revelar que os textos publicados aqui não foram escritos para que você ou outros os leiam.
Este sítio se presta a que eu plante meus desaforos, veja brotar meus humores e, caso caiba precisão, futuramente colha seus frutos maduros. Ou os deixe apodrecer. Eu não busco loas ou celebridade, pois isso não saciaria meu ego. Hoje, só admito ter pendências contra minha própria pessoa.
Como prova de meu desapego, esta publicação intimista amparará umas poesias juvenis que escrevi há anos. Como não aceitava métricas, tais poemas se exibem como prosas picotadas e sua incompetência lírica será ignorada, pois todas têm certo valor nostálgico para mim.

Altares Impuros

Perditus est, mala qui sequitur vestigia pravi

Há anos, quando me descobri mau, desejei ser ingênuo, mas tal qualidade presta apenas aos adultos mais dissimulados. Não acredito em inocência, apenas em ignorância, portanto, restar-me-ia desejar ser ignorante quanto a minhas intenções e meus sentimentos, porém, nestes dias tristemente lúcidos, às vezes penso que por sadismo ou arrogância, faço questão de escancarar as entranhas mais grotescas de minha personalidade.
Por vezes, acho-me como um rato branco, uma pobre criatura perdida entre os muros de um labirinto de dimensões incabíveis, amparando miscelâneas de drogas em sua carcaça frágil, sempre ignorante de sua importância bestial em pró de uma ciência qualquer (ao que os molestadores da cobaia são os meus próprios humores).
Houve um tempo em que eu buscava burlar meus reais sentimentos, hoje, porém, posso me dizer uma fortaleza de meus vícios, demências e deformidades; um santuário imaculado de meus defeitos, tendo seu altar e seus ídolos cuidados por minha própria honradez, pois só assim posso afirmar que me sinto homem.

Signos Encarnados

Sera sunt baba pos vigesimum, scientia post
trigesimum, divitiae pos quadragesimum

Sou estúpido e impulsivo, mas minhas irreflexões me permitem algumas certezas. Posso garantir, por exemplo, que eu não me tatuarei jamais. Simbolismos não me agradam, pois personificam juízos míopes, encabrestam os sentimentos da platéia e impõe impressões próprias à aclamação comum. Mas para que este parágrafo não seja de todo indecifrável (e sendo legível, que não exponha certa hipocrisia), devo confessar que também me dou aos modismos e, mesmo que preferisse me sobressair declarando meu repúdio às tatuagens por não passarem de alegorias sociais inúteis, assumo que me perturbo tão somente pelo signo eternamente encarnado.
Cicatrizes ou joanetes não poderiam me incomodar, mas tatuagens são deformações tramadas, marcos pueris que crêem que um ciclo mereça ser lembrado. Nós carregamos nossas vidas em nossos corpos, mas não acho certo forçá-los a sustentar um símbolo do humor de outrora, cravando-lhes o passado na pele. Eu admito que me arrependo de tudo aquilo que fiz quando mais jovem, e no futuro me arrependerei de muito do que faço hoje, mas, além de minha notória insegurança há a certeza de que eu amadurecerei, e as verdades do passado, que eu tratava como objetivos, serão meros paralelepípedos no meio do caminho.
Eu admiro certas cicatrizes de meu corpo, mas elas não passam de lembranças de um velho cotidiano, não têm presunção alguma, ao contrário de tatuagens, que se tratam de afirmações precoces. E mesmo que trate meus erros e meus arrependimentos com carinho, não vejo porque dividi-los com quaisquer transeuntes. E, mais do que isso, confundindo insegurança com amadurecimento, não creio ser capaz de escolher um signo que represente meu humor atual, ainda mais aqueles que virei a amparar enquanto minha pele se tornar flácida.

Larry Flint

Quid pectunt qui non habent capillos?

Por ser solitária e despretensiosa, a pornografia parece ter sido feita sobre medida para minha adolescência. Não me lembro do primeiro contato, mas acredito que tenha sido arrebatador. Logo, eu me jogaria sobre revistas como se cresse ser possível dar prazer às mulheres de celulose. Em momentos desvairados, dedicaria toda uma semana a tarefas despropositadas, como ejacular em cada canto da casa, carregando minhas coleções obscenas por todo lado.
Por pudor, quando concebia fantasias pervertidas demais, tinha coragem apenas de me imaginar me masturbando ao ideá-las. Eu costumava roteirizar filmes pornográficos estrelados pelas meninas de minha classe, e aquelas pelas quais eu cultivava paixões ganhavam papéis de destaque. Numa confusão entre o cotidiano e o delírio, suas atuações fabulosas contrastavam com o respeito que eu lhes prestava como colegial enamorado.
Era adepto de uma certa sexualidade platônica, e ficava especialmente excitado quando os moleques da classe realizavam concursos em que confrontavam os dotes das garotas. Eu ganhava papel de destaque e redigia regras lúcidas e convenientes ao certame. Era uma oportunidade única – quando um voyeur poderia tocar o objeto de seu fetiche por alguns momentos sem ser detestado por tanto.
Perereca Que Pula Mais, Mina Que Nunca Pegarei, Miss Colegial 2000. Tamanho era meu reconhecimento, análogo ao sucesso dos concursos, propagado por todos os três corredores, que as raparigas menos favorecidas, por ver uma oportunidade de se tornarem populares ao serem expostas junto às aclamadas, tratavam, tanto essas quanto aquelas, de se jogar sobre mim na tentativa torpe de serem favorecidas. Hoje, gabo-me por nunca ter me aproveitado de minha posição, agindo com louvável profissionalismo.

Diáspora Moral

11 E se contava uma piada sobre três robôs com mal-funcionamento que, por um pretexto qualquer, haviam sido pintados de preto.
12 E na segunda-feira seguinte, dois robôs não foram trabalhar, ao que outro apareceu bêbado.
13 Ficou, pois, grato por ser um mero transeunte e não precisar sorrir. Pegou seus amendoins e seguiu seu rumo.
14 E se defrontou com as ancas helênicas de uma mulher rija, que contemplou por calçadas e não pode evitar uma ereção.
15 E como calculou mal sua marcha acabou por se posicionar contíguo. Já que tal dona andava a passos acanhados, viu-se, portanto, obrigado às passadas mais largas.
16 Acelerou, pois, os fêmures, sob pena de caminhar próximo demais ao flanco da mulher distraída.
17 E avistou vindos do sentido oposto dois meninos esguios e bem trajados que se aproximavam num andar de confiança burguesa. Preparou-se, então, ao embate de julgamentos.
18 E sustentou, desde aí, seu peito teso e avigorou os passos o quanto pode, porém, já próximo deles, recolheu-se ao centro de si, curvou as costas e encarou seus calçados.
19 Percebeu, pois, que os garotos se engrandeceram ao passar por seus ombros.
20 E foi abordado por um indigente ríspido que lhe pediu algum dinheiro para remediar um câncer desesperado qualquer.
21 E negou, afinal, não lhe restava níquel que fosse, senão uma nota maior que as pretensões de ambos.
22 Sentiu-se, pois, horrendo e se desculpou. Diante do desapontamento áspero, justificou-se outra vez pelo pecado cometido, mas nada podia fazer além de se desculpar uma última vez.
23 E os urros ensandecidos que vinham do grande galpão verde conduziram-no através da rua. Estacou, então, diante de um templo evangélico.
24 E um mulato de ombros largos que envergava um terno negro abordou-o com simpatia, convidando-o ao culto. Mas ao perceber que se tratava de um curioso mau-vestido, intumesceu sua voz.
25 Ouviu, pois, em tom de ameaça, que seria bem recebido, como que exigissem que deixasse o pátio. Saiu e se encontrou conformado por sua loucura solitária.

Balas Perdidas

Gabriela temia sua primeira visita solitária ao metrô. Nada que combatesse sua excitação por tamanha novidade. Era amparada pelos pais com tamanho afinco que muitas vezes tratava a severidade como insensata. Mas, por estar protegida sob ruas e pés alheios, abrigada de gases que confundiam sua beleza, a estação metroviária consumia todo receio. Amedrontava-a somente um troco errado, talvez catracas pesadas demais, corpos desengonçados ou a faixa amarela que, dizem, separa a segurança do choque.
Sua ingenuidade trazia alguma proteção: a menina podia enxergar crepúsculos onde havia apenas penumbra e, assim, conseguia ignorar qualquer história sombria que cruzasse seus ouvidos. Ignorava a estupidez das ruas, das próprias pessoas, e a insanidade do medo. Seus parcos quatorze anos, porém, emudeciam seus quereres e exigiam amparo por parte dos pais. Logo, esse momento, para Gabriela, traduzia-se em liberdade, pura, branda - conhecia, ou cria conhecer, sua próxima idade.
Cada metro que percorrera naquele trajeto a trouxera para mais perto das ciências adultas - sua ida ao metrô se confundia com seu amadurecimento. Mas quando avistou os degraus que separavam seus pés daquela que seria sua real experiência, seu contato com a maturidade, Gabriela se viu encurralada por dois homens armados. Incrédula por tamanha ficção, não pôde fazer crepúsculo do balaço que lhe rasgou o peito direito. Morreu antes que pudesse pisar na estação. Rastejou até que pudesse alcançar as calçadas para, ao menos, morrer sob os resguardos de um transeunte qualquer.
Seguiram-se dias cinzas, os mais amargos noticiários. As autoridades ignoraram sua preguiça, saíram aos corredores garantindo uma nova sociedade. Em luto, os pais da menina baleada foram às ruas, às assembléias. Gabriela estava morta: a última criança dotada de certo patriotismo - e por ser estudiosa, e não ser rica, por certo, haveria de se tornar mártir. Mas Gabriela se tornou mote para afetações desnecessárias: os meses temperados com o mesmo velho descaso apagaram os protestos que a garota, mesmo muda, houvera imprimido.
Seu assassino continua livre e, assim, assassina também o significado vazio que a sociedade, aos prantos, tenta oferecer às suas crianças mortas. Com os anos sempre vem à tona a realidade de que, desprovida da dor e da perda, a morte brutal de Gabriela e de tantas outras crianças, nada mais deixou que cadáveres, sonhos que não puderam ser sonhados e um futuro que não pôde ser alcançado.

Que Seja, Revolução

Non bene pro toto libertas venditur auro

A rosa e a embriaguez virão contra os muros brutalmente sóbrios. Comporemos hinos afetados por esta nossa revolução repentina. Os sorrisos parecerão diplomáticos enquanto se arrancarem os dentes pela raiz.
Pela brandura e pureza da liberdade, enodoaremos de sangue nossas modernas avenidas. Ergueremos mártires instantâneos de vernizes vistosos e conteúdo oco. Os machados laborarão e os alicates arrancarão cada unha por vez, a começar pelo dedo mindinho.
Em busca de inimigos, reviraremos condomínios e cemitérios reacionários. Derrubaremos toda porta que se fechar à guerrilha constitucional. À ordem será permitido que moa pés que tentarem fugir e quebre joelhos que não se curvarem.
Pela fé que nos faz crer que a liberdade nascerá prematuramente, e cegos pela luz do novo mundo, declararemos independência de nosso futuro egocêntrico. O breu que tomará as ruas após as dez da noite cegará as almas. Por fim, conformar-nos-emos todos pela paz.

Informe Publicitário

Carta destinada aos senhores, senhoras, jovens e crianças desta nobre nação.

O Sindicato Marginal Brasileiro vem por meio desta apresentar seus serviços, há muito essenciais à nossa comunidade. Em um novo mundo, tão dado ao vil e ao ditoso, lançamos mão da mais ágil maneira de provocar o sucesso. Dadas as benesses de um trabalho tão competente, nossa associação tem promovido dias e noites da mais atuante prosperidade. Mais do que sólidas garantias e retornos certos, por vezes, surpreendentes, nosso sindicato traz aos associados paz e segurança num mundo sem oportunidades e de ordenados criminosos aos homens de bem.
Sabe-se que a competição existe, mas está claro que muitos não fazem parte das ambições do mercado, que por infindas vezes fecha os braços aos que procuram uma vida de virtudes cristãs e amparam os que procuram apenas o culto ao egoísmo. O Sindicato, pois, não dá as costas aos seus concidadãos, nem insiste em escolher partidos: dá-se com amor à irmandade entre os homens. Se quem o comanda insiste em destituir deste portentoso país a alcunha de terra das oportunidades, nós, sim, devolvemo-lo o título.
Somos uma classe tão organizada – e de convicções tão claras – que preferimos nos marginalizar desta sociedade, tratando-a, ela, sim, como marginalizada. Mas de nada nos privamos: contamos com nossos próprios bancos, nossa própria previdência e nossa polícia. Enfim, dispomos de toda a estrutura de que nossos associados possam carecer. Como nos confundimos com uma organização maçônica, pouco podemos dispor aos interessados sobre nossas atividades, mas que fique claro que aos nossos membros sobram segurança financeira, quietude e comodidade a toda família. Seja você também um associado do grandioso Sindicato Marginal Brasileiro.

O Sindicato Marginal Brasileiro tem sedes em todos os cantos deste país, além de várias conexões em terras estrangeiras; e representantes não apenas em subúrbios, favelas e presídios, mas também em condomínios residenciais e casas legislativas e judiciárias.

Jack Daniel's

In vino veritas

Pareço ser triste, mas não sou/Se não distingo a felicidade, tão pouco distinguiria a tristeza/Consumo princípios, pois eles são drogas caras aos mal-amados/Gozo minha vida ignorando todo o seu potencial/Quando procuro me encontrar, aí sim, é que eu me perco/Digo aquilo que creio soar lúcido a ouvidos alheios, mas não me ouço falar.
¿Como podem compor canções que tratam de amores que dão certo?/Convenço-me de que uma pessoa sem podres não passa de uma pessoa sem cheiro ou sabor/¡Deixem-me sozinho!/Deixo-me sozinho/Cada um faz aquilo que quiser de suas próprias desgraçadas.
A noite chegará/Deverei velar meu dia, mas cairei inconsciente e não poderei gozar da conveniência do funeral/Quando retornar às bases, eu estarei diante de seu renascimento/Luzes tomarão meu quarto, expulsando minha paz/Então, eu me amaldiçoarei por uma nova manhã.

Pequeno Príncipe

Ille nihil dubitat qui nullam scientiam habet

Cabe-nos, ao amadurecer, aperfeiçoar métodos civilizados de sobrevivência em sociedade. Por uma vida pacífica forjamos hipocrisia, travestimos crueldade e corrompemos boas ações. Os vícios de nosso âmago, por sua vez, florescem aprisionados em uma cúpula de inocência até serem libertos por uma pandora qualquer, que, por um capricho inusitado, acaba por exibir os males que nos habitam. A ingenuidade, o último ente que nos preserva... O instinto rudimentar que ignora os mecanismos da perversão que nos amparam quando crescemos.
Quando nós tínhamos doze anos, meus amigos se enfiavam sob as cobertas e simulavam espasmos. Falavam em espermatozóides e outras bugigangas. Quando queriam ver um sorriso amarelo e um olhar perdido na cara de um imbecil, citavam anatomias de seres sobrenaturais. Mais tarde, desvendei algumas metáforas e varei noites em busca de orifícios nem largos nem estreitos.
Só aos quinze fui entrar em um ônibus. Como não sabia da existência do arame sobre as cabeças, imaginei que se parasse em todos os pontos. Em certa hora, temi ter que pular do veículo em movimento. Já batiam as doze badaladas quando eu, sozinho na lotação, fui abordado pelo cobrador, que me levou de bicicleta do ponto final à avenida próxima de casa.
Com dezessete anos completos, ingeri álcool. Bebi pouco da cerveja precursora e tive que fingir estar alterado para ser aceito pela trupe. Nesta noite me perguntaram se eu era virgem, e como, aos quinze, eu houvera tocados nos seios de uma menina de mamilos inchados enquanto brincávamos de pega-pega, eu afirmei que sim. E não houvera sido tão ruim quanto dizem ser nossa primeira vez.

Revolta Conformista

Tempora mutantur et nos in illis

Somos donos da situação. Eis nossa estratégia, nossa guerrilha silenciosa, a forma de se ser rebelde em tempos modernos: confundir os que se preparam para nos combater fugindo de cada batalha. Esperamos, assim, que os já acomodados sucumbam à loucura por todo o seu preparo se revelar em vão. Pais descabelados por não ver obstinação em seus filhos adolescentes; burocratas com os nós das gravatas desfeitos por não ver passeatas em seus paços.
Quando nossa geração tomar as dores do mundo, daí em diante, só se fará dias monótonos nas avenidas. Policiais sedentos por usar seus cassetetes e jatos dágua; fuzis livres de rosas. Se nos torturaram em outros tempos, insurgiremos com tal tortura psicológica: não haverá passeata, e toda nudez e palavreado serão banalizados. A geração sem sustos e seus fúteis messias se ergueram entre o caos, sem questionar ou cogitar.
Uni-vos, jovens patrícias e maurícios! Abaixem vossas faixas, abandonem vossas pedras, ostentem vossos celulares em vossos pescoços! Façam do sexo rap estadunidense e do sofrimento emocore! Pois, sabemos que nossos antecessores, que se disseram vitoriosos, não só foram derrotados e humilhados, como foram manipulados para crer no contrário. Então, uni-vos, e banalize-vos!
Somos donos da situação. Mesmo que pareça um golpe desesperado, contemplamos os métodos antigos e os vemos falidos, logo, só nos resta inovar. Infelizmente, para nosso desgosto, há aquela triste ciência de que logo nos entregaremos e seremos recrutados pelo exército inimigo. E aceitaremos nosso futuro com a mesma resignação dos velhos guerreiros. Mas aí, então, esperaremos pelos futuros insurgentes já conhecedores de artifícios de combate efetivos.

Sem Questionamentos

Sentientum cum multis

Sou imperfeito, pois sou criação divina; sou intolerante, pois fui forjado diferente; sou estúpido, pois meu tempo se extingue; sou fútil, pois sou azulejo público.
Sou ranzinza por querer mais afago, sou triste por querer mais alegria, sou cético por querer mais fé, sou pessimista por querer mais esperança.
Se tenho alguma inclinação depravada, trata-se deste mau costume de questionar. Pois nunca mais questionarei e, assim, não precisarei mais pedir perdão.

Mês São

Nosce te ipsum

Chegou-me por línguas senis, pouco ocupadas, porém amparadas por grande vivência, que eu carecia de alguma hombridade, certo punho adulto. E acusaram minha sobriedade de se afogar em embriaguez nos delírios mais infantis, ousaram denunciar minha breve vida como um circo de rebeldia sem fundamento, um picadeiro para fantasias ansiosas por rolar sobre as reais idades. Por acaso, tudo não passa da verdade. Eu sou louco, admito, sou confuso, muitas vezes enlouqueço, confundo. Não trato futuro como indispensável, meu mundo, onde eu me misturo àquilo que há de real, traz um delicioso porém: ele pode e irá mudar para melhor.
Sou uma criança, sempre fui e sempre tive consciência disso (mesmo ante sua própria escassez), mas, por certos dias, tal confissão me incomodara: eu jazo sob vinte anos de devaneios, muitas vezes me embaraço naquilo que não amadurece, não evolui. Aspirações tidas como universais nunca haviam me atravessado: como eu poderei me tornar alguém em vida, um exemplo na morte?
E foi assim, tão suscetível, que acabei por cair na armadilha dessas cabeças decrépitas, ponderei minha loucura, medi minha imprudência, trouxe ao macuco meu horizonte sóbrio, enfim, fiz-me adulto para me tornar aceito, audível por quem se dispusesse a me apresentar a tal idade madura, mas principalmente por ver essa próxima etapa como necessária.
Qual não foi minha aventura na nova idade, a odisséia de uma criança entre os mais ratificados adultos. Sofri por certo tempo, reneguei-me, mas logo minha disposição se pôs a contrariar máximas maduras. Bradaram contra minha loucura e temeram o louco que se crê revolucionário, como se não houvesse nada mais aterrorizante. Logo eu era apenas outro demagogo, trataram como impudica, senão mero verniz, minha ideologia de norte tão comum, tão virtuoso.
Foi aqui que descobri o quanto prezo minha loucura: antes minha rica insanidade que sua pobre lucidez. Sou ao menos uma criança aquariana fidedigna, minha doidice não se faz empecilho, senão diante da sanidade caquética dos encanecidos. Sem loucura não haveria sanidade, pois, parece-me, então, que minha exagerada alienação dá aos velhos a impressão de que são sóbrios mais do que o bastante, dando-lhes certa dose de razão, coisa assim, que se confunde com certo punho adulto.

Cubo-Mágico

Fugit irreparabile tempus

Quanta atrocidade tornar os dias dias, os meses meses, os anos anos. É como um cubo-mágico de proporções incabíveis que compete a nós destacar em faixas monocromáticas. Eis um novo ano, que, como todo ano-novo, separa-nos de nossa antiga vida. Eis um pacto capaz de nos conceder o recomeço. Porém, não se sabe onde está a magia que nos conforta para que possamos ajustar tudo o que há de torto no passado com a simples troca do calendário posto na despensa.
Esse ano que mal amadurecera já me foi tomado, deixando-me como mero figurante de novos propósitos. Como todo temente a deus obrigado a conviver com o calendário gregoriano, encontro-me derramado entre desvarios sentimentais, em busca de ideais, senão criativos, ao menos úteis à busca da vida equilibrada da qual ouço tantas referências.
Imagine qual não foi a minha surpresa quando acordei no que seria o primeiro dia de minha nova vida e me engasguei com a decepção por tudo estar exatamente como era antes. Os móveis, os rebocos e as angústias, os asiáticos arrasados pela natureza e os homens-bomba e governos-bomba, tudo em seu devido lugar. A mesma Lua que me acompanhou em cada noite, para bem ou para mau, mal-dormida, o mesmo Sol que deu olhos às minhas vinte primaveras.
Mesmo que o calendário da despensa exiba outra vida, sinto que meus destemperos continuam os mesmos. Sei que pode ser perigoso encarar um ano novo, vida nova, sei que busco rumos que não encontrarei através de promessas, portanto, agora, fugirei do erro de outros ciclos, quando me dediquei mais a votos do que caminhos.