Culpa Nata

Anulus aureus in nare suilla

Carrego chumbo sobre os ombros, pois nasci burguês. Beneficiado entre tanta miséria, deparo-me com dilemas dispensáveis ao jovem proletário. Não sei se devo usufruir do privilégio, já que o mundo foi talhado aos ricos, mas o Céu só se permite aos pobres. Caso redimido, vejo-me fadado ao limbo dos malditos justos, mesmo que leve uma vida virtuosa.
Eu não posso ser feliz, já que há tantos condenados à depravação da pobreza material ao meu redor. Também não posso ser triste, pois desdenharia da dádiva ocasional que Deus derramou justo sobre minha testa.
Entre tanta confusão, rogo que permitam que, firmado em minha consciência angustiada, eu me poste mais à esquerda política, entregando apoio a movimentos que se exibam revolucionários. Perdoem-me, enfim, caso tal redenção desesperada acabe por ocasionar ainda mais almas encarnadas no antro social dos propensos ao Paraíso.

Best-Seller

Quantum quisque se ipsum facit, sic fit ab amicis

Dizem que eu sou um cara afortunado, que posso abrir qualquer porta que me estacar e ir para onde eu quiser. Pena eu não saber para onde ir. E mesmo que me impusesse um destino acredito que eu preferiria estar aqui, onde nasci estacado.
Dizem que eu posso ter qualquer concidadão a meus pés, que posso carregar o mundo todo nas mãos. Pena eu saber que tais proporções são desvairadas. E caso fosse tão grande eu sentiria falta do anonimato.
Dizem que eu posso fazer um corredor do labirinto de meus dias, que posso curar minha angústia injetando uns mililitros de céu-azul nas veias. Basta que eu abra as janelas e saiba ministrar uma seringa para ter toda a paz que quiser.
Por trinta reais não-reembolsáveis recebo toda a ignorância de que preciso. Garantem que se eu fizer uso correto do produto terei toda a lucidez necessária para ver o quanto eu sou um cara afortunado.

Testamento Precavido

Omnia cinis aequat

Se acaso eu morrer amanhã, desejo que nada daquilo que eu tenha escrito seja tornado público. Meus manuscritos e todo os textos impressos devem ser reciclados. Quero que se livrem de tudo que tenha me pertencido.
Se possível, gostaria que meus órgãos fossem doados. Exijo ser cremado, pois não admito ocupar um centésimo de are que seja. Minhas cinzas devem ser deixadas na primeira poça que se formar no terreno baldio mais próximo.
Não aceito que se realize funeral ou qualquer qualidade de rito. Peço que não entoem ladainhas religiosas e que poucos se sintam na obrigação de se comover com minha morte. Que todo o processo corra sem rodeios e meus resquícios sumam logo da rotina dos indivíduos mais íntimos.

Bona Fide

Alterius non sit, qui suus esse potest

O gosto por escrever me trouxe o medo do que são capazes as palavras, por isso as censuro mesmo quando sei que queres me ouvir. Por outro lado, sei do valor do silêncio e, ao exigir diálogos tácitos, certas vezes, basta-me escutar as vozes que cada feição emite.
Dito isso, resta declarar que eu te perdôo, Lara, por teu segredo. Mesmo que contemple outra mentira em tua face, eu sempre te pouparei de qualquer constrangimento, pois, se mentes e eu vejo que dissimulas, trata-se de um momento autêntico.
Mais do que isso: tu és mulher. Sei que, desde os primórdios, resta como arma às mulheres mentir contra seus algozes. Sou varão e quero te limitar a meus braços, e a meus pés, e isso faz de mim teu carrasco enamorado.
Também quero que saibas, Lara, que enquanto eu estiver aqui, tu poderás mentir. E não te preocupes jamais, pois, posso parecer lúcido, mas não deixo de ser homem, logo, quando quiseres me manipular, conseguirás (mostramo-nos asseados, mas ainda somos bestas).