Remorsos Futuros

Ex ore parvulorum veritas

Era uma anciã solteira, sua casa era simplória, pouco arejada, de um odor misterioso, tudo que remetesse à compaixão mais fraterna; o embrulho, porém, era bonito demais para uma mera caixa de bombons. Eu deveria ter seis anos quando atirei para longe tudo aquilo que estivesse ao alcance das mãos, inclusive o dito presente, bradando que não o queria. Passaram-se uma dezena de anos, uma centena de convulsões hormonais e um milhar de tumultos íntimos para que eu me arrependesse de ter feito aquilo.
Eu não gosto de crianças, pois repudio seu maquiavelismo tão bestial, detesto sua sinceridade ou dissimulação sempre despudoradas, invejo sua maldade justificável e, acima de tudo, odeio-as por não poder usar das mesmas armas que elas. Estou em desvantagem por ter que me inserir na dita Civilização, aquele algo que nos faz extrair do âmago tudo o que não existe intrínseco ao homem, já as crianças, seres brutos, têm a seu lado a pureza desavisada que deus algum ousaria condenar. Hoje, há educadores que escarnam o velho conceito de molecagem saudável e prezam a civilidade precoce, mas no mundo corporativo poucos filhos têm os pais presentes, logo, as tentativas de se criar uma geração consciente do perigo de se ser humano não passam de retórica.
Eu não vislumbro fuga da prisão moral da sociedade, ainda mais por ter os punhos presos aos grilhões da hipocrisia burguesa. Como ente civilizado, a dor de meus erros vem dos remorsos que sei que experimentarei quando eles atingirem algum transeunte (mesmo quando eu extrair algum prazer de meu desacerto), mas, considerando minha incrível habilidade em machucar meus concidadãos, não pediria a gênio algum ser incapaz de semear mágoas, nem mesmo imploraria para que minhas vítimas acordassem livres das lembranças de minha agressão: seria, pois, fabuloso se eu pudesse cometer meus erros adultos e tratá-los com aquela displicência da infância despudorada.