Quarto Mandamento

Qui honorat parents suos, seipsum honorat

Eu acho que meus pais sofrem por mim, pois mamãe ora como se rasgasse as próprias carnes, dando-se ao furor mais passível da compaixão mais sincera, a certo êxtase que não envolve fé, apenas uma encenação patética; já papai declara que sua expectativa teve um ano subtraído, uma idade descartada, um imóvel extraviado: o coitado se faz miserável para me ver abençoado com a vida burguesa mais cômoda e um belo espólio (daqueles cobiçados por quem não sabe da fealdade do contentamento).

Sei que meus benfeitores padecem da maior amargura, aquela em que resta apenas resignação, porém, não compartilho de sua dor, já que contemplo sempre a mesma estrada que leva sempre ao mesmo breu, assim, não percebo os extravios que trazem tanta desgraça. Mas, agora, para que eles não sofram mais, decidi fazer jus a minha herança: desde já não me deixarei destacar da sanidade pactuada entre os mortais da vila decadente – subsistirei tão ordinário quanto exigir a saúde de meus progenitores.
Pela sanidade de papai pleitearei um cargo público, tornando-me um funcionário bem-acomodado do Estado, onde se obra pouco sem supervisão alguma, um burocrata mesmo nos momentos de ócio, restringindo as horas de viver euforia ou retidão, rubricando dez vias antes de qualquer pensamento descabido; por mamãe terei fé (ou todas elas), prosseguirei, sim, meu caminho extraviado, mas apelarei aos mais diversos dogmas quando me crer perdido, trazendo uma penumbra de lucidez àquelas mesmas veredas.
Constituirei família, concebendo um filho apenas, já que descendentes custam caro, e carregarei meu breve cotidiano entre os limites da segurança financeira, transbordando vez ou outra as fronteiras morais. Serei, enfim, tão ditoso quanto exige o meu legado, promovendo churrascos e cervejadas por entre onde as crianças alheias correrão com a minha cria, todas ignorantes do futuro que lhes vem sendo traçado entre um gole e outro. Pois repetirei o erro mais cruel de meus pais: admitirei, sim, minha estupidez, mas exigirei da prole que a assuma e perpetue.