Julgamento Perpétuo

Bonis nocet qui malis parcit

Disseram-me que nossos entes são capazes de espelhar frações nossas. Se assim for, ao menos terei justificativa à parte de minhas confusões. Eu não me vejo refletido em qualquer pessoa com quem eu conviva ou já tenha convivido. Resta descobrir se por eu ser grotesco demais ou, simplesmente, por não reconhecer nenhuma de minhas faces. Sou, pois, um paradoxo que se confronta com outro e sai reformado do cotejo.
Foi buscando um rascunho de qualquer uma de minhas personalidades que eu encontrei um terapeuta. Hoje, trato-o por anjo: uma entidade que, vez ou outra, aparece iluminada por uma aura indecifrável extraviando minha rotina, declamando mantras estúpidos, impondo tarefas inúteis e tomando oferendas. É uma figura histriônica que joga as pernas sobre os braços da cadeira de seu consultório inóspito enquanto calcula as despesas a saldar ao final da sessão. Trato sua serenidade como impotência, assim como sua negação em admitir que eu tenha problemas psiquiátricos graves, sendo carente de drogas de tarja preta.
Meus pais mereceriam muito mais do que um mero parágrafo de um texto sem eixo que busca expurgar uns parcos ácidos nocivos de minha artéria lingual, mas terão que se contentar com tanto. Odeio meus progenitores, pois neles vejo reflexos: não vislumbro meu íntimo ou meus humores, mas, sim, meus pecados. Meus pais não me ensinaram nada além de assumir minha mediocridade em relação aos homens, ao ser supremo e ao destino que ele traça. Para me lembrar de tal condição, eles trazem em suas caras um arquivo capaz de portar resenhas de todos os erros que eu já cometi. Quando adentram em meu campo de visão, surgem como juízes que, debaixo de sua toga suada e fétida, calculam um castigo que nunca virá, já que não há sentenças – e nada poderia ser pior que isso – em julgamentos perpétuos.