Contando Carneirinhos

Pater nimia indulgentia filios depravat;
matres omnes filiis in peccato adiutrices


À noite, quando busco contentamento que me permita adormecer, imagino como seria o dia seguinte caso meus pais morressem. Costumo vislumbrar acidentes automotivos, já que eu não suportaria acompanhar meus benfeitores, cada vez mais decadentes, da alcova ao leito hospitalar e, enfim, à agência funerária, nem mesmo que ambos fossem acometidos pela peste mais brutal. Contra aborrecimentos, dou-lhes uma morte súbita – e indolor, pois ainda me resta humanidade.
Dessa forma, eu me isentaria de qualquer vínculo com o exterior destas paredes (que julgo como as mais acolhedoras, pois me garantem aquela segurança que nunca encontrei em seio algum). Eu seria, então, livre para existir apenas para mim, vivendo um sonho belíssimo que confundiria solidão, despropósito e uma mediocridade dignificante, como conviria.
Eu gozaria ao me livrar de todos os seus bens, um por um, a custos módicos, assumindo uns poucos eletrodomésticos que me dão conforto e uns agrados dispensáveis; viveria só, num cômodo esquecido em meio ao subúrbio, sem freqüentar faculdades que não as minhas próprias; longe de banhos ou vaidades quaisquer, eu consumiria apenas a mim mesmo (e sopas instantâneas).
Não que eu tenha meus progenitores como entes maléficos: são, sim, pessoas torpes, como todas as outras, mas inofensivas. Odeio-os de forma singular somente por serem meus pais. Repudio-os por sustentarem referências que insisto em rejeitar; incomodo-me por exigirem um respeito que me nego a ceder. O que mais me inquieta, porém, é tê-los como o pretexto que me condena a perpetuar seus erros.
Livrando-me de sua influência ordinária, ao menos nessas fábulas, eu posso me entregar à existência maravilhosa e
vulgar que exijo para ser feliz. Satisfeito, enfim, por ter como limites apenas os meus próprios vícios, eu cerro os olhos e durmo como quem não tem consciência.