Balas Perdidas

Gabriela temia sua primeira visita solitária ao metrô. Nada que combatesse sua excitação por tamanha novidade. Era amparada pelos pais com tamanho afinco que muitas vezes tratava a severidade como insensata. Mas, por estar protegida sob ruas e pés alheios, abrigada de gases que confundiam sua beleza, a estação metroviária consumia todo receio. Amedrontava-a somente um troco errado, talvez catracas pesadas demais, corpos desengonçados ou a faixa amarela que, dizem, separa a segurança do choque.
Sua ingenuidade trazia alguma proteção: a menina podia enxergar crepúsculos onde havia apenas penumbra e, assim, conseguia ignorar qualquer história sombria que cruzasse seus ouvidos. Ignorava a estupidez das ruas, das próprias pessoas, e a insanidade do medo. Seus parcos quatorze anos, porém, emudeciam seus quereres e exigiam amparo por parte dos pais. Logo, esse momento, para Gabriela, traduzia-se em liberdade, pura, branda - conhecia, ou cria conhecer, sua próxima idade.
Cada metro que percorrera naquele trajeto a trouxera para mais perto das ciências adultas - sua ida ao metrô se confundia com seu amadurecimento. Mas quando avistou os degraus que separavam seus pés daquela que seria sua real experiência, seu contato com a maturidade, Gabriela se viu encurralada por dois homens armados. Incrédula por tamanha ficção, não pôde fazer crepúsculo do balaço que lhe rasgou o peito direito. Morreu antes que pudesse pisar na estação. Rastejou até que pudesse alcançar as calçadas para, ao menos, morrer sob os resguardos de um transeunte qualquer.
Seguiram-se dias cinzas, os mais amargos noticiários. As autoridades ignoraram sua preguiça, saíram aos corredores garantindo uma nova sociedade. Em luto, os pais da menina baleada foram às ruas, às assembléias. Gabriela estava morta: a última criança dotada de certo patriotismo - e por ser estudiosa, e não ser rica, por certo, haveria de se tornar mártir. Mas Gabriela se tornou mote para afetações desnecessárias: os meses temperados com o mesmo velho descaso apagaram os protestos que a garota, mesmo muda, houvera imprimido.
Seu assassino continua livre e, assim, assassina também o significado vazio que a sociedade, aos prantos, tenta oferecer às suas crianças mortas. Com os anos sempre vem à tona a realidade de que, desprovida da dor e da perda, a morte brutal de Gabriela e de tantas outras crianças, nada mais deixou que cadáveres, sonhos que não puderam ser sonhados e um futuro que não pôde ser alcançado.